Texto de Diogo Lopes para Combo
… a estrada não
tem fim, a cassete rola no auto-rádio; é mais pela viagem do que
querer chegar a algum lado. Este é um combo mítico e universal,
ou seja, é uma combinação de diversos elementos capaz de
produzir um certo efeito nos nossos afectos e memórias. O combo transporta
com a sua fonética irresistível um declarado e musical optimismo
ou não fosse o termo usado originalmente para descrever as pequenas bandas
do primórdios do jazz. Uma formação improvisada, um arranjinho
inventivo capaz ainda assim de preencher com sons quentes os sítios por
onde tocava. A palavra repetir-se-á ao longo do texto como um refrão
colorido dado que ela é também o título desta exposição,
um combo de fotografias, vídeos e músicas montado por Daniel Blaufuks
(DB) em Lagos.
No seu caso poder-se-ia especular sobre o seu combo pessoal de viagem, arrancando
com Jack Kerouac e Robert Frank indo até aos filmes mais à deriva
de Wenders. Alguns dos seus melhores momentos concerteza passados dentro de
carros em andamento, contributos para o conceito da dromoscopia avançado
por Paul Virilio, essa forma resolutamente moderna (e sentimental) de olhar
para o mundo através do pára-brisas. É com essas imagens
que voltamos a ouvir um clássico-nostalgia de Bob Dylan numa sequência
de “clipes domésticos”, visualmente remisturados por assim
dizer. O princípio da produção caseira, e também
o da edição de autor, dá-lhes uma qualidade íntima,
quase privada. Afinal, muito se revela pela nossa biblioteca, pelos nossos alinhamentos
de canções, pelas nossas antologias. Esta é então
uma playlist de favoritos que à falta de melhor, e reiterando a forte
presença da americana por aqui, se poderiam descrever como eye-tunes.
Mais um contributo para afirmar as qualidades homeopáticas da música,
pela voz de Alan Vega: «rock’n’roll is killing my life»
(Suicide, Ghost Riders; Roir, N.Y. 1977). O fascínio de tudo o que foi
cantado e tocado nos últimos 50 anos, a que este combo de DB presta declarado
tributo, está precisamente aí, na entrega quase fatalista a um
modo intensificado de sentir e viver, pela música. Com esse património,
aqui revisitado já na melancolia da memória, se terá aberto
um maior reportório para a tradução sonora dos nossos “estados
de alma”. Aqui apresentam-se alguns, com novas iconografias, banda de
imagem acrescentada à banda de som. Esse encontro é sempre esperado
porque as canções antecipam normalmente, também elas, uma
explosão de imagens em quem as ouve. Elvis Presley é talvez a
maior personificação disso: «Vestido em azul, vermelho,
branco e até dourado, com uma capa de super-homem e coberto de jóias
que ninguém sabia se eram falsas, Elvis pode representar o pior da nossa
cultura – ele é arrogante, egoísta, vaidoso, condescendente,
materialista até ao ponto da loucura. Mas não é preciso
levar isso a sério, não é preciso levar o que quer que
seja a sério.» (Greil Marcus, Mistery Train; Plume, N.Y. 1997)
Falamos de figuras ou pelo menos de rasgos “maiores que a vida”,
musas momentâneas, cuja aparição sempre se quer fixar. Não
como telediscos, mas sim como breves retratos no caderno de esboços digital,
com a mesma baixa fidelidade de uma maquete de um qualquer compositor ou grupo.
Combos de som e de imagem que revelam as preferências, num sentido lato,
do seu autor. Particularmente as de como orquestrar ou, forçando outra
terminologia discográfica, arranjar uma peculiar cojugação
– a sua - que convide também outros à empatia audio-visual,
cinestésica, com aquilo que escolheu. Uma política de selecção,
de que aqui já se falou e que parece marcar presença em muitos
trabalhos de DB. Cruzam-se aqui várias referências, não
devendo nenhuma ser levada à letra: a do flâneur escolhendo com
negligência pedaços de vida moderna, a do arqueólogo do
século XX inventando o seu Grand Tour, a de um sofisticado filatelista
descobrindo belas estampilhas, a de um coleccionador com mais cumplicidade pelas
pinacotecas que pelas caixas brancas. Todos estes avatares são heterónimos
de DB, que se desdobra neles para ser em simultâneo absolutamente confessional
e absolutamente distanciado.
Há que saber manter a compustura, mesmo a chorar. E aplicarmo-nos na
crucial coreografia dos pequenos gestos, sempre potenciais princípios
para todos os “filmes pessoais” que estão para vir.
Nisto há sempre uma boa dose de auto-indulgência – notas
de rodapé para consumo interno do esteta - mas também uma real
imersão num programa onde cultura e quotidiano se romantizam como um
todo à maneira da equação da nouvelle vague: cinema=vida.
Jean Seberg chora em loop, como se não tivesse chegado toda a tristeza
a que ela disse bom dia; Neil Diamond ataca Oh No, No em tom de drama. O encontro
entre os dois é fatal, tudo a puxar para baixo, um combo tão cortante
que sabemos que só se interpretou dor assim porque ela é tão
real quanto a nossa.
Nova tentativa de definição: cartas postais ilustradas com melodia,
recordações armadas para disparar, objectivo: coração.
Aqui não há dúvidas, os vídeos primitivos desta
jukebox sentimental são como as madeleines de Proust, partidas e chegadas
em busca dos tempos perdidos, mnemónicas multimedia de um qualquer top
10 da vida de DB: naquele momento e lugar, aquela canção. Em muitos
dos seus trabalhos ele tem vindo de facto a construir um atlas de afectos e
episódios que oscila entre a revelação autobiográfica
e a sua imediata camuflagem num exercício de estilo redigido em caligrafia
cuidada.
Há pois uma linhagem que talvez se possa remontar ao esteta novecentista
e à sua predilecção aristocrática por certas formas
de beleza, que vai colhendo e da qual não abdica entre o bric-a-brac
e confusão em redor. Meio século de pop-rock paira sobre nós
como um Avalon que nos protege e acompanha; fomos convocando os seus cavaleiros
luminosos e sombrios para travar batalhas e celebrar vitórias. Elvis,
em encore, resume-o como ninguém: Graceland, um estado de graça
para o qual se entra com apenas três ou quatro acordes. Mas o alter-ego
que melhor encarna esta forma de vida está na recta final do karaoke,
de volta ao asfalto com cigarro ao canto da boca, pose estupidamente teatral,
impossível de não nos rendermos a ela. Bryan Ferry, farsante,
sedutor, cançonetista canalha que se insinua à conta do golpe
baixo e delicodoce, a tentar manter limpo o fato completo alugado no meio das
valetas de uma grande cidade. Todos os clichés do mundo, o mais descarado
fingimento; resulta sempre. Pelo meio, um oceano de instantâneos e micro-narrativas,
como quando desafiaram Hemingay a escrever a mais curta história de sempre:
«Vendem-se, sapatinhos de bébé nunca usados.» Ou como
aqui, neste Combo, quando ela entra na sala, a estrada não tem fim...