Setembro

 

 437. No jardim.

 

438. Imagem e escrita. Deslocação e memória. Serão estas as razões do meu trabalho, as bases da minha pesquisa. Esta pesquisa é poética.

 

439. A memória é abstracta e geométrica.

 

440. Todas as minhas exposições, os meus filmes e os meus livros equacionam estas ligações, entre a literatura de exílio e a fotografia de viagem, a memória pessoal e a memória colectiva, entre a memoria da viagem e a viagem pela memória.

 

441. A exposição recente em Madrid estudava a memória da pintura (e necessariamente a do cinema) presente na fotografia. Talvez fosse preciso entender primeiro o livro paralelo para se apreender a exposição.

 

442. A pintura chegou-me sempre através do cinema.

 

443. Cada fotografia é um labirinto. Mas é também uma história, um fim e um início, simultaneamente. Entender isso é percorrer este labirinto e, eventualmente, sair dele.

 

444. Um vídeo é uma fotografia com tempo e movimento. A sua descodificação é semelhante à de uma fotografia. Esta descodificação pode ser pessoal e não colectiva.

 

445. Uma fotografia não necessita de ser um documento, pode ser uma canção. Não necessita de ser matéria, pode aspirar a ser orgânica.

 

446. Alterando o título a uma imagem, altera-se o seu significado. A escrita dobra a imagem. Gosto de o experimentar.

 

447. Conheci em tempos um senhor muito viajado, que guardava todos os papéis, que lhe chegavam às mãos. Cartas e livros, mas também facturas, senhas, fotografias, bilhetes de cinema e de museus, recortes de jornais e declarações de impostos. Arquivava tudo isto em pastas e caixas ano após ano. Era assim um diário escrupuloso da sua vida, do que fez, do que gastou, do que comeu e em que locais, mas que não incluía nenhuma nota pessoal, nenhum registo dos seus pensamentos ou sentimentos.

 

448. Tal como o espaço dentro de uma imagem, a memória é um caos, que necessita enquadramento. Este acontece consciente ou inconscientemente.

 

449. A geometria do espaço dentro de uma imagem.

 

450. Um arquivo não é uma colecção, porque um coleccionador escolhe e um arquivista não tem escolha possível.

 

451. Choveu sem parar durante três dias. A paisagem alterou-se.

 

452. A memória pode ser temporal, mas também apenas espacial ou sensorial. A recordação de um certo lugar ou de um certo cheiro.

 

453. Uma pessoa que perde a memória deixa de o ser. Lembro a descrição que Buñuel faz da sua mãe, que lia e relia atentamente a mesma revista e não tinha recordação de o já ter feito anteriormente.

 

454. A fotografia é um espaço. A fotografia é uma memória. A fotografia é um texto. A fotografia é um postal.

 

455. Uma colecção de fotografias não é um arquivo de imagens. Uma fotografia não necessita de fazer parte de uma série, de uma colecção ou de um arquivo. Ela pode conter a série, a colecção e o arquivo dentro de si, isto é, pode ser auto-suficiente.

 

456. Uma fotografia casual não é sempre fruto de um acaso.

 

457. O lado técnico da fotografia ainda impressiona. A máquina utilizada, o formato do negativo, o número de megabites, a impressão gigante ou, em contraponto, minúscula.

 

458. Ninguém pergunta ao pintor o tamanho do pincel, ao escritor o peso do documento, ao cineasta o nome do laboratório da película.

 

459. A fotografia é, tal como o boxe, uma prática diária.

 

460. Encontrei aqui perto, imagine-se, uma biblioteca. Uma biblioteca cheia de pensamentos. Fica por trás do jardim.

 

461. Somos todos fotógrafos amadores.

 

462. Uma fotografia pode ser abstracta. Mesmo sendo figurativa. E, sendo uma folha de papel, é uma página, porque tal como esta, contém a ideia de um continuum dentro de si, a noção do próprio tempo a passar.

 

467. A fotografia parece-me mais próxima da escrita do que da pintura ou da escultura. Aliás o seu nome indica, desde logo, essa relação. Embora alguma fotografia me pareça mais próxima de alguma pintura ou de alguma escultura.

 

468. Antes a fotografia estava mais próxima da alquimia. Existiam fórmulas, pós, líquidos e escuridão.  Existia solidão no laboratório e dedos amarelados do fixador. O papel necessitava de tempo de exposição e os negativos tempo de revelação. A luz vermelha iluminava o que ainda era segredo. Mas, acima de tudo, havia experimentação. As fotografias não saíam perfeitas mas continham a essência dos banhos e da luz, das mãos e das pinças.

 

469. Um artista que, para além dos próprios trabalhos, fornece explicações sobre estes, deve ter pouca confiança na sua arte. (Klee)

 

470. Uma fotografia (um vídeo) traduz uma ideia, uma sensação ou apenas um fascínio. Este não se explica. Exerce.

 

471. Uma fotografia de um copo de água não é apenas uma fotografia de um copo de água, nem sequer uma representação de um copo de água. Assim como uma palavra não é apenas o seu significado imediato.

 

472. Um silêncio.

 

473. Um momento.

 

474. Um segredo.

 

475. Uma morte.

 

476. Gostaria que o meu trabalho englobasse tudo o que sou, tudo o que vi, tudo o que desejo, tudo o que recordo, tudo o que sei, tudo o que me interessa, tudo o que fiz, tudo o que não fiz, tudo o que desejei ser.

 

477. Fizemos hoje uma excursão ao lago. V. disse que também queria ir e apareceu com o seu amigo J., bastante enervante, por sinal. Mas, em contrapartida, trouxe a sua máquina fotográfica e tirou-nos uns belos retratos de grupo.

 

478. O meu trabalho é tão sério como a brincadeira de uma criança.

 

479. Encontrei aqui na casa dois pacotes de cartas de K. e A.. Eram longas as cartas que nos escrevíamos, ainda à máquina, aparentemente sem pressas, duas, três, quatro páginas.

 

480. Lembro-me de não sair de casa durante dias, com medo de perder um telefonema, pelo qual ansiava. Não me recordo se alguma vez chegou.

Mas recordo-me do desapontamento de não ser a voz esperada ao telefone.

 

481. Já não esperamos por telefonemas em casa.

 

482. A memória é uma imagem.

 

483. Como se (Als ob) era o nome irónico dado pelas pessoas de Theresienstadt à cidade. Como se fosse uma cidade, como se existisse aí uma vida normal, como se o filme fosse verdade.

 

484. Não subestimar o acidente e a casualidade dentro do trabalho artístico.

 

485. Uma lista telefónica é um modelo de arquivo perfeito (até aparecerem os telemóveis).

 

486. Penso que a fotografia, tal como o cinema, é uma magia (um feitiço), que perdeu no entretanto alguns dos seus poderes.

 

487. Coleccionar, arquivar, registar, catalogar.

 

488. S. telefonou a meio da noite a perguntar nomes de hotéis de luxo.

 

489. Em criança coleccionava selos, moedas, cromos, postais ilustrados, cápsulas de garrafas, prospectos de turismo e propaganda política.

 

490. Quando as pessoas se deslocam têm tendência a fotografar, a filmar e a escrever. São registos necessários, que provam e intensificam essa experiência de deslocamento, da viagem ou do exílio. São as alterações do quotidiano que provocam estes actos criativos. As outras artes parecem ser mais sedentárias, necessitam de espaço físico próprio.

 

491. A imagem mais simbólica da série Terezín continua a ser, para mim, a das pessoas à mesa: uma falsa família numa falsa refeição numa falsa sala de jantar numa falsa casa numa cidade falsa num país falso dentro de um falso documentário realizado por uma falsa equipa de cinema.

 

492. Em 8 de Junho de 1980, H. almoçou acompanhado no Apolo no Funchal, um restaurante de 2ª categoria. Estava calor nesse dia, daí que tivesse comido um gelado no fim da refeição. Pagou quatrocentos e três escudos, pelos quais lhe foi passada a factura com o número 4754.  Não foi nem a primeira vez nem a última que esteve neste local, como provam as facturas nº 4184, 4812, 4834, 5088, 5172 e 5244 na minha posse.

 

493. Os críticos de arte e o público em geral tem dificuldade em compreender exposições de fotografia, cujo tema não seja facilmente reduzido a uma frase só: esta exposição é sobre esta zona, é sobre a auto-representação, é sobre este grupo de pessoas, é sobre esta indústria. A fotografia torna-se assim importante pela sua agenda e não pelo que possa representar ou inspirar.

 

494. Hiato: uma pausa ou um intervalo numa sequência, numa série ou num processo.

 

495. Ontem recebemos uma visita. R. veio da cidade e, em sua honra, descemos ao mar por algumas horas. No regresso parámos num local misterioso, algo escondido, no meio das rochas, com vista para a enseada. As nuvens desceram ao nível do mar, criando um tapete uniforme, cuja cor se ia alterando ao anoitecer.

 

496. O tamanho de uma fotografia (ou de uma projecção de um vídeo) depende também da distância a que se pretende colocar o observador.

 

497. Uma reprodução de uma fotografia numa revista ou livro é sempre uma reprodução. Não deve ser confundida com o original. Este apenas existe na impressão original com o formato e o acabamento escolhido pelo seu autor.

 

498. Um livro de fotografia bem desenhado pode criar um novo tipo de original.

 

499. A fotografia (a memória, a escrita) é uma deslocação.

 

500. Na fotografia, estamos felizes.