A Perfect Day

(243 Postais em Cores Reais)

Here we are in St-Trop!

Heavenly weather,

There is a whole gang of us. Perfect!

Love.

Estas são quatro linhas de um das centenas de postais que constituem o conjunto da obra. Os textos são ‘combinados’ ou colidem com postais fotográficos que são igualmente arbitrários, mas sempre um cliché de frases bem conhecidas. Somos encorajados, à semelhança de Freud, a “redescobrir a verdade no mais banal” ou, guiados pelo desejo de Husserl e Wittgenstein, a voltar às coisas para procurar um melhor entendimento da mente e sua psique na experiência vivida do quotidiano e na linguagem comum.

We are at Hotel Beau-Rivage.

Lovely weather. We go to the beach.

I’ve been playing boules.

It all comes to an end on Tuesday.

Alas.

O que poderia ser mais simples, claro e directo? O que poderia ser uma melhor máscara?

Daniel Blaufuks convida-nos a contemplar um vasto tecido sócio-cultural, que reflecte e dá forma às nossas relações com o ambiente, ao mesmo tempo que produzimos o tecido da nossa própria criação – uma representação de nós próprios. O mundo acaba sempre por ser visto e conhecido à luz da projecção que fazemos da nossa condição inter-subjectiva. Este desejo profundo de saber é lindamente escondido numa série de estratégias através das quais se extrai da experiência mais banal uma descrição sobre como é viver na Terra, dizendo-nos exactamente o oposto, como não é.

A Perfect Day foi apresentado publicamente pela primeira vez na Location One Gallery, na Greene St. em Nova Iorque. Sessenta postais acompanhados de um filme. Este trabalho é baseado nos textos de George Perec intitulados “243 Postais em Cores Reais” (243 Cartes Postales en Couleurs Véritables), incluídos em L’Infra-Ordinaire. Com o tempo, evoluiu para uma série de exposições e instalações; permite vários tipos de configurações. Em Coimbra tornou-se um projecto de arte pública – A Perfect Day (em Coimbra), em colaboração com o arquitecto João Mendes Ribeiro.

George Perec inspira Daniel Blaufuks não apenas no sentido estreito desta utilização de postais, mas no sentido epistemológico; isto é, Blaufuks partilha do entendimento da realidade de Perec como sendo, em última análise, insondável e infundada, daí a ligação às coisas da vida quotidiana como a única referência do nosso deturpado sentido do real. Perec, o autor de La vie; Mode d’Emploi, foi um dos fundadores de um grupo de escritores chamado OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle). Um acrónimo que representava a sua assunção que, de facto, toda a interacção humana é regulada por números. À semelhança da arte cabalista da Gemetria, que atribui valores numéricos às palavras hebraicas e as transcreve de acordo com o valor numérico das suas letras. Uma transformação deste tipo, juntamente com anagramas e outros mecanismos linguísticos, fornecia uma vasta tela na qual todos os enredos, descrições e prescrições para conceber um mundo melhor (ou apenas este mundo) podiam ser imaginados com grande certeza gramatical e numérica. Perec surge ao lado de Italo Calvino, Raymond Queneau, Marcel Benebou, Jacques Roubaud, e outros, fundamentalmente conscientes das coisas e dos lugares e do nosso desejo impossível de os conhecer para nos conhecermos a nós próprios. Tal como a numerologia, que atraiu a atenção de alguns dos melhores escritores, pensadores e músicos na Viena do início dos anos 20. O uso do quadrado mágico para organizar uma composição não era desconhecido. “Quanto mais constrangimentos impomos, mais nos libertamos das correntes que agrilhoam o espírito” é uma das máximas do OuLiPo, que é como uma paródia às aulas de Webern numa casa privada entre Janeiro e Março de 1932. No final da última aula, Webern disse: “... À medida que desistimos gradualmente da tonalidade, surgiu-nos uma ideia: ‘Não queremos repetir, tem de haver constantemente algo novo!’ Obviamente isto não funciona; destrói a inteligibilidade. Pelo menos é impossível escrever longos trechos musicais dessa forma. Só depois da formulação da Lei dos Doze Tons se tornou possível escrever novamente peças mais longas. Queremos dizer ‘duma forma mesmo nova’ o que foi dito antes. Mas agora posso inventar de forma mais livre; tudo tem uma unidade mais profunda. Apenas agora é possível compor em livre fantasia, a nada aderindo a não ser a linha. Colocando-o de forma bastante paradoxal, apenas através destes constrangimentos sem precedentes se torna possível a liberdade total!” (The Path to the New Music, edição inglesa Universal Edition, Londres, 1993). No Doutor Fausto de Thomas Mann, o músico Leverkühn repetirá estas mesmas palavras.

Poucos artistas, se algum, adoptaram as estratégias criativas do OuLiPo até agora. A Perfect Day de Daniel Blaufuks é baseado na referência constante de Perec a uma vista apresentada de longe, transmitida por um desenho ou uma palavra e, depois, por correio, carta, postal, etc, apenas para ser novamente renunciada, os desenhos a aguarela serem transformados num quebra-cabeças e dissolvidos na água (La Vie; Mode d’Emploi). O mundo tranquilo dos postais, piscinas, praias, lagos de montanha e, acima de tudo, céus azuis seleccionados pelo artista dão uma nova orientação à leitura.

 

Daniel Blaufuks aplicou os seus prismas fotográficos noutros trabalhos como My Tangier com o escritor Paul Bowles. O seu Collected Short Stories depende igualmente de uma vasta constelação de literatura, arte e fotografia. Para retirarmos o total prazer da sua actuação sobre estas convenções que possibilitam e asseguram a estabilidade da produção genérica, temos de ter em conta ambos os axiomas da sua visão interior, os quais é ao mesmo tempo impelido a suspender. Daniel Blaufuks é incansável na sua insistência na superfície imaculada da qual o olho inocente não suspeitará ou descobrirá qualquer razão para dúvida, mas onde o seu público não falhará em reconhecer águas duvidosas e traiçoeiras. Não longe da realidade duma história de Sherlock Holmes, os pormenores do dia-a-dia estão cheios de pistas para os olhos iniciados e completamente vulgares e pouco significativos para os leigos. De acordo com o mistério de Purloined Letter (A Carta Roubada), uma das primeiras histórias policiais de Edgar Allan Poe, uma carta é escondida, mas onde? À superfície, por cima de uma secretária aberta, escondida estando totalmente exposta. Não, as fotografias de Daniel Blaufuks nunca, nunca, nunca estão sobre/sub-expostas, ele insiste em manter as suas superfícies intactas e aí, na sua pele, está a sua profundidade. Removendo uma camada, descobrimos outra, igualmente misteriosa e igualmente resistente ao nosso questionamento. Parece que o único modo através do qual podemos atingir algum equilíbrio considerando a nossa incerteza é articulando as linhas ponteadas que criam, e que têm necessidade constante de recriar, estas frágeis pontes que assumimos terem sido construídas entre as nossas almas monadistas, mentes solipsistas, e o que lá está, Das Ding an Sich (a coisa em si mesma).

Lisboa deu-nos novamente a conhecer uma pessoa heterogénea. Num mundo de incerteza são necessárias muitas máscaras. Daniel Blaufuks fornece-nos novamente um dispositivo contra uma overdose de realidade. O impossível objecto de desejo torna-se o paradigma do paraíso nunca, nunca, nunca, nunca, nunca alcançável.