Cultura de arquivo

O que significou receber o Prémio BES Photo?
Foi simpático. Foi um reconhecimento, sem dúvida nenhuma. Fiquei contente. Não o quero sobrevalorizar, mas também não o desvalorizo. Já estou a trabalhar há tanto tempo em fotografia que penso que é um reconhecimento, pelo menos, deste trabalho apresentado e por um júri maioritariamente estrangeiro.


Quando recebeu o Prémio terá feito a análise do seu trabalho. O que sente que marcou mais o seu percurso?
Há exposições que, penso, são marcantes dentro do meu percurso, que me empurraram noutras direcções e que tiveram consequências. Sinto, que este trabalho, que apresentei no Centro Cultural de Belém (CCB) tem essa característica, tal como a exposição na Gulbenkian, assim como os “London Diaries” há muitos anos. São trabalhos que me indicaram caminhos que gostaria de explorar com mais profundidade. Estou especialmente contente com este prémio, por ter conseguido realizar um projecto, que me tinha proposto, num prazo mais curto que o previsto. Isto porque o trabalho não estava pensado para esta exposição e, de repente, no momento em que decidi que o ia utilizar neste fim, acabei por ter um prazo - o que não é necessariamente negativo, antes pelo contrário. Fiquei satisfeito por concretizar “Terezín”, porque também sinto que é importante dentro do meu trabalho.


Em que sentido considera que foi importante, com base nas linhas de investigação que tem?
Por um lado, pelo tema, mas também em termos formais, porque, por exemplo, a decisão de apresentar as fotografias como páginas de livros, isto é, com os enquadramentos, com fundo, sem encherem a moldura, como normalmente faço, representa, para mim, um corte e uma experiência. Decidi arriscar, também pelo facto de estar lá uma fotografia com um objecto, que é um diário, formas, que, mais uma vez, vão iniciar outras possibilidades dentro da minha fotografia e do que se pode colocar dentro de um papel fotográfico.


O trabalho integra um vídeo de 90 minutos, intitulado "Theresienstadt", uma série de imagens impressas, e a maquete para o livro “Terezín", todas relacionadas com uma localidade próxima de Praga, na actual República Checa, onde existiu um campo de concentração nazi. Pode falar-me um pouco do projecto?

Abreviando, o projecto começa com uma fotografia que encontrei num livro de W. G. Sebald, “Austerlitz”, e que foi estando sempre presente nos últimos tempos; pensei sempre utilizar aquela fotografia incluindo-a dentro do contexto do meu trabalho. Esteve suspensa, até eu decidir “vou à procura do local desta fotografia e ver se existe, será que existe?”
Acabo por encontrar o local neste campo de concentração de Terezín, de que o Sebald fala. Era a pista mais óbvia, embora ele não tenha relacionado directamente a fotografia com o campo. A partir daí, a minha curiosidade e interesse levaram-me a explorar a fundo a história deste campo e o projecto foi crescendo, acabando, de facto, no livro. O fim do projecto é o livro e a sua publicação. Daí que tenha tomado a decisão de as fotografias na exposição manterem o enquadramento das páginas do livro. Uma das razões que me levou a essa decisão é que penso que se cria assim também uma aura de respeito em relação às pessoas que estão retratadas nas fotografias e que não estão lá voluntariamente, como é óbvio. Já estavam no campo de concentração involuntariamente e estão no meu trabalho involuntariamente.


Fala-se muito da relação que se estabelece entre a fotografia e a literatura. Neste caso, parte de uma imagem, apesar de o contexto ser literário, como se partisse de uma dúvida. O que o levou a querer chegar até ao contexto em que a fotografia se insere?
Sim, parto de uma imagem mas, dentro do trabalho do Sebald, aquela fotografia é essencial. Vejo aquela fotografia como parte de um acto de literatura. Continua a ser uma relação muito forte com a literatura apesar de partir de uma imagem. Se visse aquela fotografia noutro contexto, possivelmente não teria ido atrás dela. Mas é o próprio Sebald que cria este mistério, sempre. Os textos dele estão cheios de perguntas sem resposta e, aqui, apetece-me tentar encontrar, não a resposta porque acho que não há “a resposta”, mas sim a minha resposta possível para aquela imagem.


Como se desenvolveu o processo de trabalho desde que encontrou essa imagem?
Desde que vi a imagem original do livro, na edição alemã, em 2001, esteve, como tantas outras, algures dentro de uma gaveta na minha cabeça e, no ano passado, decidi descobrir este sítio.
Nunca tinha ido a nenhum campo de concentração e — embora tenha trabalhado sobre a história dos meus avós, sobre o exílio, e tenha inclusive feito uma peça em vídeo sobre o nazismo para uma exposição no Museu Berardo em Sintra — nunca quis ser tão óbvio como é, de certa forma, trabalhar sobre um campo de concentração. Portanto, aqui, aconteceu. Embora alguns fotógrafos já o tenham feito e respeito muito isso, não me vejo ir a Auschwitz tirar fotografias. Aconteceu por uma série de acidentes, de coincidências e também de sorte, obviamente.
Se não tivesse conseguido tirar a fotografia paralela à do Sebald, pegunto-me se o projecto teria acontecido na sua totalidade. Talvez não, porque aquela fotografia é, de facto, a chave de tudo. E, posteriormente, a minha descoberta da existência do filme. Se não tivesse descoberto a história à volta do filme, o que seria o projecto?
Até começar a estudar sobre isto, pensava que o nome do filme, conhecido como “O Führer oferece aos judeus uma cidade” era, de facto, este. Pelo que entretanto li, este título foi posto ironicamente por um preso logo na altura em que estava a ser rodado. Colou-se até hoje, mas o filme, na realidade, chamava-se “Theresienstadt”, sendo um documentário muito formal, com um título muito formal.
Já tinha ouvido falar do filme, mas o facto de ter lido sobre este e ter conseguido as cópias dos fragmentos, fez com que o projecto não esbarrasse em nenhum obstáculo, o que poderia ter acontecido muito facilmente. Isto é, se não tivesse tido acesso ao filme, o projecto limitar-se-ia às minhas imagens de um campo de concentração e, aí, não o teria apresentado, pois não faria muito sentido para mim.


De que forma enquadra o uso da fotografia, do livro e do vídeo? Qual é a função de cada um deles no todo?
Praticamente todas as minhas exposições tiveram uma componente de vídeo, algumas com mais importância, outras com menos, mas tentei sempre trabalhar nesse triângulo, em que uma coisa não exclui a outra, pelo contrário, inclui-a, abraça-a, funcionando como três formas de informação complementares e paralelas. Isso, para mim, não representou nada de novo.
Um livro é sempre uma boa maneira de trabalhar. Trabalho página atrás de página e pensei mais no livro do que na exposição. Isto é, o projecto foi concebido como livro, sendo a exposição, no fundo, uma consequência deste, como na exposição “London Diaries” que foi uma sequência de um diário que já existia. Na “Collected Short Stories” no CAM foi ao contrário. Pensei primeiro na exposição e depois o Jorge Molder sugeriu um catálogo. E pensei então, em que género de catálogo, num que fizesse sentido no contexto do projecto da exposição e que fizesse parte integrante do trabalho posteriormente, como livro.
Por isso, o livro aqui é mais uma peça de descodificação. São objectos complementares, embora neste projecto não diria que as fotografias são o mais importante. Por exemplo, no “Collected Short Stories” cada peça existe autonomia; ou seja o sistema é o mesmo, mas cada diptíco é independente um do outro.
O pior que pode acontecer com este trabalho é dizerem: “Gosto muito daquela imagem porque a luz é muito bonita”. Porque isso não interessa para nada. O que é que interessa a luz neste projecto? Aquilo é algo universal e também aí sinto a importância deste trabalho dentro do meu percurso.


As fotografias têm um carácter enigmático enquanto o livro documenta?
Sim, as imagens levantam questões e o livro explica. E este é um livro não publicado. Senti que este projecto sem a informação que está no livro levanta demasiadas questões e interessava-me responder a algumas dessas questões.
Numa revista de arte perguntaram se o trabalho tinha a ver com a estratégia do prémio, isto antes sequer ainda de haver um júri. Não compreendo essa ideia de estratégia. Uma das razões que me levou a pôr este trabalho no prémio foi, sem dúvida, a exposição ser no Centro Cultural de Belém, que tem muitos visitantes, muitas escolas, onde faz sentido apresentar um projecto como este. Se fosse numa galeria não haveria muitas crianças, por exemplo. Não é um trabalho em que me interesse que tudo seja um mistério. Portanto, também tem um lado informativo, ou se quisermos didáctico, o que é para mim importante.


O livro representa uma certa “cultura de arquivo” que tem sido uma linha de investigação no seu trabalho. Tem essa noção de arquivo bem presente, mesmo em termos de estratégia expositiva e de apresentação pública? Por exemplo, a exposição está intimamente relacionada com a estrutura de um arquivo.

O arquivo é exactamente isso —contém dados privados mas que estão públicos. Mas só são públicos se as pessoas forem aos arquivos. E aos arquivos só vão normalmente as pessoas que estão a investigar algum tema. É essa a linha do meu trabalho que me interessa mais: onde se encontram e se esbatem o público e o privado. O arquivo aí é fundamental. Voltando à imagem do Sebald, o que me fascinou naquela imagem é essa ideia de arquivo, de mistério: aquelas estantes todas cheias de papéis e, depois, as mesas estarem vazias, como um arquivo nunca utilizado. Metaforicamente, tem uma relação muito grande com todos os meus trabalhos. Aquela ideia do diário, com uma fechadurazinha muito frágil, tudo está ligado com isso, com o privado tornado público.


A sua preocupação é informativa, de tornar público, de dar a ver…
Sim, neste caso é tudo isso. Quando faço uma exposição são as minhas fotografias que tirei aqui ou ali — tudo isso se justifica com o espectador que vai à galeria. Quando pego num material que utiliza pessoas já falecidas, que morreram naquelas condições, numa época e num local terríveis, a única justificação que julgo que, de facto, existe é a da informação e de preservar essa memória. Não devo usar este trabalho para meu bel-prazer.
Em outros projectos é-me um pouco mais indiferente o que as pessoas vêem nas fotografias. Por exemplo, na exposição “No Próximo Sábado”, na Galeria Carlos Carvalho, que foi a que foi nomeada para o prémio, sei que as pessoas fizeram leituras diferentes e, possivelmente, nenhuma delas será a que eu faço. Mas aí não sinto a necessidade de ter de explicar tudo. A arte não precisa de se explicar. Agora, se um trabalho é a partir de um assunto tão importante como este, penso que tem de haver uma dose de informação. Não penso que seja muito ético pôr um filme destes sem ter qualquer posição.


No filme, teve a preocupação de repor a verdade?
Uma certa dose de verdade possível que é, por um lado, deixar a etiqueta que lá está — de um filme encenado pelo nazismo — e, por outro, criar uma distância através da cor vermelha. Vejo esta cor como um carimbo no passaporte ou como as canetas vermelhas com que nos davam as notas. O vermelho tem uma conotação negativa e, simultaneamente, é a cor do sangue. Não sei se haverá alguma relação, mas aproprio-me disso conscientemente.


Já seguiu outras vias em que essa via documental é mais vincada mas, neste caso, para revelar uma falsidade recorre também a um exercício de manipulação. É uma encenação para que o real se torne compreensível?
A única maneira de lutar contra aquela mentira é a de criar verdades ou outras ficções. No fundo, aquilo que criei é também uma ficção; o que Sebald escreveu é uma ficção, ao descrever um personagem que provavelmente nunca existiu, mas que poderia ter existido. Mas é a única forma de lutar contra toda aquela manipulação da verdade. Embora este seja um trabalho sobre a memória, também diz muito sobre como nós, actualmente, olhamos o passado e o presente.
Estamos numa altura em que se organizou um congresso para negar que o Holocausto existiu: há que lutar contra isso. Com todas as realidades possíveis, o Holocausto existiu como facto. Na exposição, está uma imagem de um postal com o número de palavras contadas, porque os presos só podiam enviar trinta palavras e o postal tinha uma função muito concreta para os alemães: era uma forma de ser enviada comida para o campo pelos familiares. E era uma maneira de pessoas já mortas parecerem vivas, porque as datas eram falsificadas e os postais entregues muito tempo depois. Mas, hoje em dia, há quem diga que se se podiam mandar postais de Auschwitz, aquilo não era assim tão mau. No presente, penso que em muitas das situações que vemos na televisão ou mesmo em documentários, ou já temos opinião formada e esta é confirmada pelo que vemos ou raramente mudamos de opinião. Estamos à mercê do realizador. Todos nós já saímos de documentários com a cabeça completamente formatada sobre assuntos sobre os quais antes não sabíamos nada. Isso pode ser muito bom em alguns casos, mas também é muito perigoso.


Coloca na exposição a questão da manipulação?
Existem documentários que defendem que foi Bush quem fabricou o 11 de Setembro e que nenhum avião caiu no Pentágono. Não gosto especialmente dele, mas não consigo acreditar nessa hipótese. Mas existem filmes que provam isso por A mais B. E há pessoas que, depois de verem estes documentários, acreditam nessa verdade aparente. Temos de ter a consciência do quanto podemos ser manipulados pela imagem, principalmente porque a maior parte das pessoas hoje em dia quase não lê. Tudo nos chega através de imagens. Já não temos sequer tempo para ler — já não é só uma questão de querermos ou não ler, é também uma questão de termos tempo. Temos de estar preparados. Por exemplo, neste filme de Terezín, tudo o que sabemos é posto à prova, sessenta anos depois do filme ter sido feito. Há famílias a jantarem calmamente e em privado, como se isso fosse possível neste ou noutro campo de concentração. Há que saber que nem sequer é uma família, há que ter acesso às chaves de descodificação, mas também há que fazer as pessoas sentirem a necessidade de ter acesso.


Existem diferentes teorias relativamente à abertura dos campos de concentração ao público e à exposição de materiais relacionados com o Holocausto: algumas delas defendem a literalidade, outras, a apresentação de uma memória crítica. Quando foi a esse campo de concentração, deparou-se com essa questão?
Este campo tem muito pouca coisa exposta. Não sou grande fã de museus tipo “museu judaico”. Mas, por outro lado, também não vejo muitas outras hipóteses de manter certas coisas vivas, certas memórias, a não ser que os artistas trabalhem sobre elas. Tem de ser algo constante e contínuo e isso não está sempre acessível a não ser neste tipo de museus. Acredito que os museus são muito importantes neste processo e quando fiz o filme “Um Pouco mais Pequeno do que o Indiana” referi que não existem museus sobre o fascismo português. Não existe nada palpável, o que existia está a ser destruído, e isso é muito estranho. Como é que lidamos com uma memória que já só existe em livros, em jornais e na cabeça de algumas pessoas? Estamos a aproximar-nos de um tempo em que a maior parte das pessoas já nasceu depois do 25 de Abril. Penso que os museus têm essa importância e função, nem que seja como lugares de debate e que possam ser criticados por expor de uma determinada maneira e não de outra. Mas é preciso haver museus para existir essa discussão e para gerar a curiosidade que, depois, talvez leve alguns artistas a trabalharem sobre esses temas de outra forma, de formas mais livres, mais subjectivas também. Uma das vantagens da arte é de poder ser subjectivo e isso é uma grande liberdade. Com toda a responsabilidade que essa liberdade representa.


Como situa o seu trabalho em relação a outros artistas, como o Christian Boltanski, Fischli and Weiss, que têm essa prática de documentar, de reunir?
Há artistas que sigo com muito interesse, como o Boltanski e a Tacita Dean, por exemplo. Situo-me em relação a muitos artistas sentindo respeito e admiração por alguns trabalhos, mas sinto que estas temáticas não se escolhem. Acho que as pessoas quando fazem estes trabalhos é porque eles estão relacionados com a sua vida, com a sua cultura, mais do que com escolhas. Não escolhi trabalhar sobre isto. Daí que sinta uma ligação, uma corrente, com esse tipo de trabalhos, que resultam de vivencias e recordações semelhantes.


Há actualmente no seu trabalho uma necessidade de pensar o passado? Antigamente, trabalhava com situações mais contemporâneas, de vidas, de viagens, de um itinerário?
Também tem a ver com a idade. Eu próprio relaciono-me com o meu trabalho de uma forma diferente do que me relacionava há dez anos, por idade, por maturidade e, também porque, quanto mais idade mais passado se tem. Aos 20 anos não temos tanto passado, não temos tanta história para contar, e não temos muita consciência disso. O passado também se constrói.
Nunca concordei muito com o que escreveram acerca do meu trabalho se centrar na viagem, embora não me coubesse a mim ver o que os outros viam. Mas a viagem também tem essa noção constante do passado porque, num dia, se está num sítio e, noutro dia, se está noutro. O passado é muito mais rápido. Quando estamos num sítio parece que o tempo não passa, porque hoje iremos dormir no mesmo quarto em que dormimos ontem. Quando estamos em viagem, a sensação de passado é contínua: estamos num sítio hoje e, no dia seguinte, já falamos dele como uma memória.
Claro que a minha experiência pessoal num qualquer hotel não tem nada a ver com trabalhar com uma temática tão universal. Não há comparação possível. Mesmo o trabalho “Sob Céus Estranhos”, sobre os meus avós, tem outra envolvência, porque também sinto o peso que aquilo tem e o respeito que o assunto merece. Mas todas estas experiências estão ligadas entre si, eu estou mais velho e algumas temáticas têm um outro tipo de peso logo à partida.


Esse foi o seu primeiro documentário. O que o levou a trabalhar mais com documentário e filme?
Há coisas que gostaria de dizer que em fotografia não consigo exprimir de uma forma clara. Na fotografia estamos sempre a lutar contra o tempo, não se tratando daquele sentido “barthesiano” do tempo, de captar, etc., mas principalmente a lutar contra o tempo em que as pessoas vão olhar para a fotografia e pensar sobre ela, que é sempre muito reduzido. Mesmo na pintura isso já se passa, mas na pintura sentem-se as camadas, entra-se pela matéria. A fotografia tem o problema de ser uma arte mecânica e as camadas só existem na própria imagem e não na textura do papel fotográfico. Estamos sempre a lutar contra o tempo que o espectador vai observar a fotografia, pensar nela, e enquadrá-la na sua memória visual. Um filme funciona muito melhor, nem que seja por uma questão do tempo de visionamento, dado que se obriga as pessoas a estarem conscientes um tempo pré-determinado.
Continua a haver uma reverência semi-religiosa numa sala de cinema, talvez apenas pelo facto de estarmos às escuras. Penso que a fotografia diminui o tempo e o vídeo o estende, porque obriga a um olhar concentrado. O poder de captar o interesse e a capacidade de atenção do espectador são cada vez menores. O jornal “Público” dá estrelas…chegámos a uma altura em que a arte é quase, se é que não é já inteiramente, um entretenimento, e, a partir daí, não há volta para trás.


Mas não considera que quando se apresenta cinema ou vídeo nos museus existe uma certa reacção do público? O espectador no cinema está preparado para a duração do filme, mas por exemplo, no caso dos 90 minutos de duração do seu vídeo, o que espera do espectador?
Não espero que as pessoas vão ver os noventa minutos do vídeo “Theresienstadt”. Mas num documentário espero. Devo ter odiado muitos filmes mas, que me lembre, só saí de um a meio e não foi por causa do filme, mas da música que puseram em cima do filme. Continua a haver um certo respeito, nem que seja para não incomodar as pessoas que estão ao nosso lado. E há uma leitura diferente no cinema do que existe numa exposição. Também porque as pessoas, quando vão ao cinema, vão preparadas para estar uma hora e meia e quando vão a uma exposição vão em grupo, raramente vão sozinhas, depois há um que quer ficar mais tempo, mas outro que quer ir embora...
De qualquer maneira, este trabalho seria um projecto diferente sem vídeo. Seria outra coisa; não sei se melhor se pior, mas seria, sem dúvida, outra coisa. Daí que o vídeo sempre me tenha interessado e até pelo facto de no vídeo poder usar o som. O vídeo dá-me essa possibilidade que tenho utilizado muito, como na exposição “No Próximo Sábado”: a banda sonora do vídeo acompanha-nos na visão da exposição e das fotografias. Existe um mistério, até se ver o vídeo, de perceber o que é este som. Na “Collected Short Stories” no Centro de Arte Moderna em que se estava sempre a ouvir o barulho da chávena, apenas como banda sonora não me interessaria. Não quero que as pessoas fiquem a adivinhar: “são castanholas, ou será o quê?”. A solução tem que existir e passa por ter a origem do som na imagem do vídeo.


Achei que o vídeo expõe a presença das pessoas, o que é contraditório, pois o vídeo é um suporte mais imaterial…
Nas fotografias de Terezín estou de facto, a escolher caras, o que é horrível. Com o filme, temos a possibilidade de não fazer escolhas, pois está lá tudo. Não sei explicar porquê, mas é importante. Talvez se relacione um pouco com o trabalho do Boltanski. Ele não escolhe dez caras; escolhe trezentas.


Será para reforçar a ideia da presença de pessoas que foram anónimas?
Sim, completamente. São só rostos. Não sabemos quem são grande parte das pessoas. Obviamente também há uma empatia, porque aquela senhora podia ser a minha mãe, a minha tia, a minha avó. Isso pode acontecer a qualquer um de nós. Penso que isto também é importante.


Quais foram os eixos em que decidiu trabalhar o filme?
Quando vi o filme na versão original, pensei que não daria para ser mostrado. Reduzi-o para 25 por cento de velocidade, o que faz com que volte a ter a duração original, uma possibilidade de que o próprio Sebald fala. Uma das últimas partes do livro é a personagem a tentar encontrar a mãe que, possivelmente, esteve neste campo e uma das hipóteses que o Sebald dá é, de facto, reduzir o tempo do filme e tentar encontrar o rosto da mãe pelo meio.
Portanto, tem a ver com essa busca e o filme transforma-se num arquivo: estamos à procura de uma memória de alguém que está nesse arquivo visual. Quando fiz isso, reparei que o som fica dramático, uma música fúnebre, que é um lamento que serve as minhas intenções. Com este mecanismo a voz off, em alemão, deixa de se entender e resta um som demoníaco ou de Deus quem sabe, é uma voz que vem das alturas. São resultados que aconteceram no processo, os quais não planeei, mas quando comecei a testar as velocidades me agradaram, e também o facto de o filme voltar aos seus 90 minutos originais, repondo a verdade através de uma ironia. Sempre tive a intenção de trabalhar o filme plasticamente. Utilizei este filtro e o filme segue a sua ordem original. No livro utilizei um texto de um historiador sobre o filme e sobre as condições em que aconteceu, que incluí a ordem e uma descrição de cada cena do filme, a partir de desenhos que foram encontrados no próprio campo.


Opera como uma tensão entre o documentário e o documental ficcionado?
Os documentários são todos ficções. Nós podemos entrevistar uma pessoa, como podemos entrevistar outra. Se calhar, escolhemos uma pessoa que tem uns olhos muito bonitos, que fica muito bem na câmara, mas, se calhar, a outra senhora tem uma história muito diferente para contar. Agradou-me o facto de o início do filme ser numa sala de espectadores. No fundo, os intervenientes no filme sentam-se, eles próprios, metaforicamente, para assistir a este filme e para assistirem à sua própria morte. Em tudo isto também há uma junção de intenções e acasos felizes, como no caso do som, em que eu próprio fiquei surpreendido. Felizmente ou infelizmente, não sou suficientemente artista para prever tudo o que ia acontecer.
A minha ideia inicial para o filme nem sequer era apresentá-lo. Era, primeiro, para servir como base de estudo e, numa segunda fase, como base às fotografias. E, na verdade, as fotografias com o filtro vermelho surgem paralelas à ideia de colocar um filtro também no filme. Houve um pensamento sobre qual seria o trabalho fotográfico que iria sair deste filme. Foi crescendo mutuamente e até bastante tarde eu não sabia se ia ou não apresentar o filme na exposição. Foi uma decisão talvez um pouco influenciada por a exposição ser no CCB com as condições que permitiram uma sala de vídeo. Se fosse uma galeria, provavelmente, não teria acesso a uma sala com aquela capacidade que o filme precisa, pelo menos, numa primeira vez em que é apresentado.
Tive uma reunião com o CCB, antes de decidir como seria tudo, para ver como seria o espaço e propuseram construir uma sala para o efeito. Imagino que o filme pudesse ser mostrado separadamente das fotografias porque é tão rico na sua história. Não pelo meu trabalho, mas pelo que está por detrás.

Como encara o cruzamento da fotografia com outras práticas artísticas?
Sempre existiu. Nos anos 60 os americanos usavam a fotografia para documentar performances e as fotografias é que se tornavam nas obras, porque as performances existiam apenas ao vivo e num curto espaço de tempo, mas, de resto, não é nenhuma novidade. O poder da fotografia sempre foi utilizado. Artistas como Yoko Ono ou Chris Burden sempre utilizaram fotografias e filmes.
O que sinto é que as pessoas que utilizam hoje a fotografia carecem de mais um pouco de cultura fotográfica, não de técnica — isso é perfeitamente indiferente — mas, de cultura fotográfica. Se os artistas tivessem um pouco mais de cultura fotográfica, saberiam o que já está feito, o que já foi feito melhor ou feito noutro contexto. Existe muito pouca cultura fotográfica, mesmo por parte de alguns críticos. Por incrível que seja, há poucas histórias de arte que incluam a fotografia.


Não lhe parece que isso se deve ao facto de os artistas que foram buscar a fotografia normalmente não queriam saber da própria história da fotografia. Era uma posição dos próprios campos …
Ironizando um pouco: estão para a fotografia como se um fotógrafo fosse agora pintar a Mona Lisa. Se vamos trabalhar dentro de um contexto, devemos perceber esse contexto. Como existem muitos fotógrafos que não fariam sentido no campo das artes plásticas. Numa altura em que as coisas, felizmente, se misturam, tem de haver essa curiosidade transversal.
Sinto isso por parte de alguns críticos que vão a exposições e olham para a fotografia como se estivessem a olhar para uma pintura, mas não passaria pela cabeça de um especialista em escultura criticar uma exposição de pintura. A fotografia como arte não começou em Düsseldorf em 1976. Mas, penso que também isso está a mudar.


No caso do BES Photo, por exemplo, faz sentido designar o Prémio como sendo de fotografia?
Não me incomoda que qualquer tipo de artista seja nomeado para o BES Photo, o que me incomoda verdadeiramente é que nem no Prémio EDP nem no Prémio União Latina nem noutros prémios de artes plásticas se nomeiem habitualmente fotógrafos. Artistas como o José Luís Neto ou o António Júlio Duarte, e haverá outros, nunca foram nomeados. Incomoda-me um pouco que a fotografia se abra a outros campos, sem que os outros campos se abram à fotografia.


Faz sentido haver um prémio de fotografia em Portugal?
Sim, neste momento penso ainda que sim, porque se não houvesse um prémio de fotografia eu não teria sido nomeado e não teria ganho. É tão simples como isso. Ou o José Luís Neto. E não foram os membros portugueses do júri que nos deram o prémio, e isso também é bastante significativo. Não teríamos sido nomeados em lado nenhum e não teríamos ganho em lado nenhum, portanto, um prémio de fotografia é importante nesse sentido. Mas se faz sentido num âmbito mais amplo, penso que não. Quando finalmente, as mentes de certas pessoas se abrirem e começarem a entender melhor a fotografia. Mas, de facto, excepto o Augusto Alves da Silva, nenhum dos fotógrafos nomeados para este prémio — João Tabarra, José Luís Neto, António Júlio Duarte, Daniel Blaufuks — foram nomeados para qualquer coisa que seja. Não acredito que nos últimos dez anos nenhum destes nomes tenha merecido pelo menos uma nomeação. Acho que, pura e simplesmente, foram ignorados pelos júris, porque não estavam a trabalhar em pintura, desenho, instalação ou vídeo.


No seu caso, consideram-no muito mais artista plástico. Não será por inserir vídeo e outros meios, enquanto outros fotógrafos só trabalham a fotografia?
Também tem a ver com o meu posicionamento desde muito cedo. Mas continuo a pensar que sou um fotógrafo, que trabalho a partir da fotografia e, como tal, sou um artista, um artista visual. É indiferente seres fotógrafo ou seres pintor. A
Aliás inspira-me a contaminação. O que interessa é tentar fazer o melhor que se sabe naquilo que fazemos e ter algo para dizer que valha a pena ser dito...