A Imagem Suspensa

 

Alexandre Estrela e Daniel Blaufuks

 

AE: Gostava que falasses primeiro deste trabalho e sobre o que te levou a Terezín.

DB: O projecto começa com uma imagem que encontrei num livro do escritor alemão W.G. Sebald: uma fotografia de um espaço que se parecia com um arquivo. Na altura fiquei bastante fascinado com essa imagem, que no livro aparece a preto e branco e muito mal impressa, pelo menos na edição que eu tinha, uma edição alemã da altura. Existe uma parte da narrativa do Sebald em volta de Theresienstadt, mas ele nunca explicita se a fotografia é de lá ou não. Fiquei sempre com essa dúvida: se a fotografia foi tirada dentro do campo, se foi tirada pelo próprio Sebald - e isto é uma coisa que até hoje não sei – ou se foi uma fotografia encontrada por ele.  E que tanto poderia ser uma fotografia de época, ou seja, de quando a cidade estava ainda em funcionamento como campo de concentração, ou já nos anos posteriores à guerra; nos anos 60, 70 ou mesmo 80 ou 90, o livro é de 2001. Pensei logo em utilizar aquela fotografia como uma metáfora para o meu trabalho, mas depois o tempo foi passando. Mais tarde, através de outras coincidências, encontro uns diários e venho a descobrir que o autor passou por este campo, assim voltei de novo a esta imagem. Acabei por decidir visitar Theresienstadt, que agora se chama Terezín, e descubro então o local da fotografia do Sebald e faço a minha própria imagem. Nessa altura, tal como quando vi a imagem pela primeira vez, tudo me pareceu encenado, é um espaço que parece um cenário. Talvez seja necessário referir aqui que eu nunca tinha estado antes num campo de concentração.

 

AE: E como foi a visita à cidade?

DB: Cheguei de autocarro, bastante apreensivo, por razões óbvias. Terezín encontra-se dividida em duas áreas: uma é a fortaleza grande em forma de estrela do século XVIII, onde fica a povoação e onde hoje vivem novamente cerca de três mil pessoas; a outra parte é a antiga prisão propriamente dita, que é anterior à Segunda Guerra. A prisão funciona hoje como núcleo museológico. A sala da fotografia encontra-se dentro deste núcleo, o que explica um pouco o aspecto encenado, de que falava antes. A sala está lá, fechada com uma porta de vidro, como um palco inacessível. Nem sequer consegui entrar. Quando, já um pouco frustrado, descobri a possibilidade de fotografar através do vidro da janela, notei que este tinha aparentemente sido o ponto de vista do próprio Sebald ou de quem quer que tenha tirado a fotografia do livro. Na altura pensei que devia pedir autorização e que decerto me abririam a porta mas, ao mesmo tempo, não quis criar essa situação de particularidade ou de excepção.  Achei mais interessante manter o mesmo acesso de qualquer outro visitante e, de certa forma, gosto de fotografias complicadas. Esta impossibilidade de entrar também reforçava essa ideia de encenação e portanto igualmente de inacessibilidade. Quando era criança levavam-me a concertos de música clássica, e lembro-me que imaginava muitas vezes o que aconteceria, se eu me levantasse e subisse ao palco, como reagiriam os músicos, as pessoas. Mas claro que nunca tive nem nunca teria essa coragem, daí que o palco represente para mim essa inacessibilidade de que falávamos.

 

AE: A abordagem à sala fez-me lembrar a minha experiência quando fui ver o Étant Donnés do Marcel Duchamp em Filadélfia.  A porta por onde se espreita para o cenário tem vários buracos mas só dois é que estão gastos e ensebados pelos milhares de visitantes . Assim quando te aproximas nem hesitas na escolha, sabes que somente atrás daqueles dois é que a acção se desenrola, o trilho já estava programado assim como a imagem final que era igual à que já conhecia de reproduções fotográficas. Fiquei com a nítida sensação que fui um voyeur controlado, com uma perspectiva igual à de milhares de outros espectadores.

DB: Quando viajei para Terezín nem sequer levei a fotografia do livro, porque não tinha ainda intenção de fotografar - era mais uma vontade de descobrir.  Foi depois ao comparar as duas imagens, que fui encontrando as suas semelhanças e as suas diferenças. Há objectos que foram alterados, a mesa que está lá agora é completamente diferente da da imagem no livro, a mesa pequena dessa fotografia desapareceu, e não tenho bem a certeza se o relógio ainda lá está ou não. Na minha fotografia ele não aparece. Mas talvez lá esteja ainda e eu não o tenha visto. Ou vi e esqueci-me. Continua a haver uma certa ambiguidade no meu conhecimento deste lugar. O que é um facto é que aquilo sempre me tinha parecido um cenário e quando lá estive ainda mais cenário encenado me pareceu!

No texto menciono o Bartleby do Melville, porque esta sala me pareceu um palco para uma encenação desse texto. A qualquer momento pode entrar uma personagem e pegar numa daquelas fichas e continuar o seu trabalho. E tudo isso fala de suspensão, tal como no teatro também existe uma suspensão.

 

AE: Como no Bartleby.

DB: E essa é a suspensão que também gostaríamos que tivesse acontecido para que tudo aquilo não acontecesse. O Bartleby é um bocadinho também esse ideal de pessoa que não participa, não obedece.

 

AE: Sim, de como participar não participando. Se há à partida um consentimento, um silêncio comprometido, a questão está em como elevar esse silêncio a uma recusa.

DB: Exactamente. Também somos responsáveis pelas nossas não-opções, as nossas letargias, as nossas apatias. E como tu dizes, participamos não participando. Mesmo neste caso, participo num prémio de fotografia patrocinado por um banco, com várias acções que, no passado e no presente, me suscitam dúvidas e apreensões. Mas, voltando a Terezín, aquela imagem também me levantava outras questões: de que tipo de sala se tratava, de um arquivo, de um escritório, de uma biblioteca. Estando lá, percebi que a sala se chamava Geschäftszimmer, o que, traduzindo literalmente, quer dizer sala de negócios, e aqui negócio tem, para mim,  o sentido de um acontecimento concreto. É um nome muito hábil.

 

AE: Esta sala, que aparece neste trabalho como o epicentro da máquina de Theresienstadt, é, obviamente, uma sala de controlo de um centro panóptico. No entanto nunca aparece no filme feito pelos alemães, que serve de base ao teu trabalho.

DB: Não aparece porque esta sala se encontra na parte da prisão do campo e o filme não mostra sequer que existe uma prisão. Nesta prisão estavam, de facto, os presos, enquanto os outros estavam presos, embora aparentemente não o estivessem, porque estavam na povoação. Portanto havia ali também duas realidades: na prisão estavam cem pessoas numa cela que era suposta ser para três, estavam os que tinham sido acusados de um crime, roubo, assassínio, membros da resistência checa, comunistas, etc. No restante campo, as pessoas não tinham acusação formada, estavam ali apenas por serem judeus. E, no filme, a presença nazi é inexistente, logo uma sala como esta nem sequer teria lá lugar. Essa ausência presente é reposta, de certa forma, na minha versão do filme através do som grotesco da voz-off original.

 

AE: Um som que ao mesmo tempo rebenta com a língua alemã e se aproxima mais de uma intervenção divina furiosa. Falando das fotografias, tu tratas tudo da mesma maneira de modo que essas realidades são todas niveladas.

DB: Bem, eu não quis fazer diferença entre o que era prisão na altura e o que não era.

 

AE: Porque tudo era prisão. Como a prisão sem limites do THX.

DB: Uma prisão dentro de uma prisão dentro de uma enorme prisão, apesar de haver um tratamento diferente das pessoas e de umas realidades serem mais urgentes que outras. Mas era um estado de emergência diferente, porque as pessoas que estavam na prisão tinham uma aparente maior probabilidade de morrerem do que no exterior, isto é, no interior da fortaleza. Houve várias pessoas que foram fuziladas e até enforcadas nesta prisão. Na povoação as pessoas eram transportadas para outros sítios para morrerem ou morriam de fome e de doença. Dentro do trabalho, não quis tomar a posição de isto não poder ter acontecido aqui, só pode ter acontecido no outro lado, ou vice-versa. A realidade é sempre ficcionada. Porque é a metáfora e a carga simbólica que me interessam, em cada imagem que vejo. Mesmo aquela sala - o Sebald, ao não revelar o que aquilo é - pode servir de metáfora para bem mais do que uma situação focalizada geograficamente naquele lugar.

 

AE: Como é que articulas os vários elementos deste projecto?

DB: O projecto nasce dessa fotografia e acaba no meu encontro com o local dessa fotografia e com as realidades que estão em volta. Começa num livro e acaba, em parte, apresentado em forma de livro. O Sebald dá os passos todos, porque, inclusive, menciona o filme, do qual eu já tinha ouvido falar, e fala da eventualidade de o desacelerar e torná-lo assim mais explícito, mais profundo. Este é para mim um objecto fascinante pela sua conceptualização: um falso documentário sobre uma falsa cidade cujos habitantes também eram falsos, porque eram forçados a ali permanecer em suspensão. Numa bolha. Até existia dinheiro, que só servia ali, como num jogo de Monopólio. Embora, em geral, tenhamos uma ideia positiva da imaginação humana, aqui essa imaginação é terrível. É um mundo imaginário aterrorizante e aterrador. Nem digo tanto pelo fim que essas pessoas inevitavelmente teriam, sendo que a grande maioria delas acabaria por morrer pouco depois da rodagem do filme, mas já e apenas pelo facto de serem forçadas a viver neste sítio. Só isso basta para que seja aterrador e é uma terra imaginada, uma Terra do Nunca ao avesso.

 

AE: O Rem Koolhaas no Delirious New York fala de uma aldeia em miniatura habitada por anões vindos de toda a América, uma aldeia quase autónoma com dinheiro e comércio próprios... mas que estava inserida numa feira de diversões em Coney Island. De onde vinham as pessoas ou, melhor, os figurantes que vemos no filme?

DB: O  campo começou por ser para os habitantes judeus daquilo do que hoje é a República Checa e a Eslováquia. Depois começaram também a chegar pessoas da Alemanha e dos outros países ocupados. Congregava assim uma mistura bastante grande de culturas, de profissões e de classes sociais.

Da Alemanha chegavam, em grande parte, pessoas idosas, convencidas que íam para um tipo de  lar de terceira idade no Leste e forçadas a trocar as suas posses - nalguns casos riquezas, noutros não -  por esta ideia de que iriam viver numa cidade-modelo e que o Estado trataria deles até ao resto dos seus dias. Outros eram pessoas conhecidas: professores, actores, músicos… pessoas cujo desaparecimento poderia suscitar protestos internacionais e até dentro da própria Alemanha.

 

AE: O teu filme começa com pessoas numa assistência a verem algo, que poderia ser, na realidade, o seu próprio filme. No filme de ficção científica apocalíptico Soylent Green, acontece algo de semelhante, um velho segue voluntariamente para uma clínica de eutanásia e morre lá dentro calmamente a ver um filme de natureza tipo Disney. Morre assim a ver a sua própria cultura e a sua imagem.

DB: A imagem da sua felicidade aparente. Mas o que é estranho neste filme e que eu acho fascinante é que, de facto, a felicidade parece lá estar. Nós não sabemos o grau dessa felicidade, porque é uma felicidade fictícia, mas ela também tem um lado real. Apesar de tudo, eles estavam vivos e não sabiam do seu destino final. São pessoas sem rádio, sem televisão e sem jornais. Houve um período em que estes existiam, mas eram jornais censurados. Há um exemplo muito concreto em Theresienstadt: havia transportes de pessoas que entravam e transportes que saíam do campo. Pouco antes do final da guerra foi feito um grande transporte, porque eram necessários homens para trabalhar em Auschwitz e, à chegada, os homens capazes iam para os trabalhos forçados e os não capazes eram imediatamente gaseados. Mas a mentira no topo da mentira, era a informação dada em Theresienstadt, de que estes homens iriam regressar ao fim de seis semanas, porque o trabalho estaria finalizado nessa altura. Ao fim de um tempo, chamaram as mulheres desses homens para irem ter com eles. E portanto tudo isto se passava numa sequência muito rotineira: as pessoas iam desaparecendo e os outros achavam uma situação normal, porque a informação que tinham era a de que íam para uma cidade semelhante mais a leste, onde eram necessários trabalhadores. Recebiam-se postais que tinham sido pré-datados à força meses antes e cujos remetentes já estavam entretanto mortos. A mentira propaga-se e às tantas já não se estranha e isto é também o espelho do que aconteceu na própria Alemanha: os judeus eram levados e muitas pessoas acreditavam que eram deportados e recolocados em cidades próprias. É tudo um crescendo, dentro do próprio sistema e dentro da cabeça das próprias pessoas. Por isso temos que ter muita atenção com os sistemas e a forma como estes se desenvolvem. E de como é feita a gestão de pessoas em competição entre si. Durante a guerra, cada agência nazi funcionava em concorrência com as outras, cada uma queria fazer melhor e a certa altura, as coisas iam-se atropelando umas às outras. A ideia de fazer o filme-mentira surge assim e um filme é algo que fica para a posteridade, daí o meu interesse.

 

AE: E das implicações que isso tem.

DB: E da forma de como hoje se olha para o filme. Temos que nos lembrar de que forma é que este filme foi feito e em que circunstâncias, porque, mesmo sabendo a verdade, é-se enganado pelas imagens. E isso é muito interessante e acho que tem muito a ver com a forma como olhamos para as imagens de hoje. Recebemos a informação que nos dão e que justifica e sanciona a nossa opinião já formada antes ou recebemos imagens que vão contra essa mesma opinião e afirmamos que essas imagens são falseadas. Como a informação nos chega através de imagens e a maior parte das pessoas não lêem jornais ou livros, essa informação através da imagem é praticamente tudo o que temos.

 

AE: Há quem defenda que o filme e sobretudo o vídeo vêm no prolongamento de uma tradição oral.

DB: Sim e não, porque damos mais valor à imagem do que ao som. Mas perdemos, se é que alguma vez a tivemos, a capacidade de saber ler imagens. E não temos nem tempo nem vontade para ver tudo, existindo assim uma gestão das imagens por parte do emissor e do receptor, uma guerra é mostrada mais do que outra e por aí em diante.

 

AE: E tu, na manipulação do filme, ao diminuíres a sua velocidade e ao o colorires de vermelho obrigas-nos então a uma reflexão sobre aquilo que está ser visto. Depois de ter visto o teu filme pensei na difícil questão da apropriação, sobretudo no teu posicionamento enquanto artista, na defesa de determinados valores. Penso que, no teu caso e nesta peça, aproprias para que a história possa continuar a ser bem contada. Acontece um pouco transportares aquilo para o teu tempo. No fundo é um legado que carregas do princípio até ao fim, tentando respeitar a verdade intrínseca do próprio filme. Mas, de vez em quando, resgatas personagens daquela farsa, apagas a inscrição Nazi Staged Film e retratas pessoas de uma possível família, a tua...

DB: As fotografias funcionam como uma paragem em cada rosto. É impossível olhar para cada pessoa uma a uma. Falamos de arte e da prática de imagens mas, no fundo, estamos sempre a teorizar, porque nunca conseguimos abranger o número total de imagens disponíveis. Aconteceu-me com o Sob Céus Estranhos. Enquanto estava a olhar para as fotografias dos refugiados senti essa angústia da escolha: não se pode utilizar tudo e por isso têm de se escolher e, ao fazê-lo, senti-me um pouco como os polícias que escolhiam as pessoas. Mas eles não escolhiam pelas caras, de facto, escolhiam por sistema, escolhiam por regra, escolhiam por lei, escolhiam por absurdidades. Na fotografia, é um pouco ao contrario, escolhem-se caras porque há um olhar ou uma expressão, mas é sempre uma escolha. Neste trabalho senti também essa importância – e penso que o facto de o filme ser passado na íntegra, também é uma recusa dessa escolha. Sei que isto é muito simbólico, mas metaforicamente está-se a dar uma segunda vida àquelas caras. Eram rostos que estavam encerrados num arquivo há anos e de repente vêm à tona, são vistos!  E obviamente são apenas imagens, são apenas - nem sequer sombras são - pálidas referências das pessoas que foram, mas este olhar é também o máximo que se lhes pode devolver. Uma fotografia é um espelho com memória. Portanto esta escolha tem inerentemente a ver com memória. E, neste caso, com a falta de memória que existe destas pessoas, porque, na verdade, foram grupos de pessoas, foram famílias inteiras que desapareceram e não fica ninguém para as recordar. Uma coisa que sempre me interessou no meu trabalho é essa sobreposição entre o que é público e o que é privado, entre essa memória colectiva e a nossa memória pessoal. E também a estranheza de este filme me recordar - e isso é muito estranho – um filme de família. Todos estão contentes e bem. E nos filmes de família também estão todos aparentemente felizes, nunca há famílias problemáticas. E o fascinante nestes filmes nem é sequer o que mostram, mas sim o que não mostram - um layer, em baixo ou por cima ou em redor, e que não está nas imagens do filme. E isso é importante, o facto de nós não conseguirmos agarrar o que é factual. Há, neste filme de Theresienstadt, uma cena com uma família à mesa: os avós, o casal e umas crianças. Quem souber a identidade destas pessoas, sabe também que aquilo não era uma família. Colocaram-nos numa mesa juntos para fazerem aquela cena para o filme. Mas quando vês o filme aquilo é uma família numa sala de jantar. Tens um casal de Amesterdão com umas crianças que vieram de Berlim. É uma falsidade que é necessário desvendar. Se olhares para um filme de família, pensas “ah que bela infância!” e depois alguém te diz que aquela criança era violada pelo tio que está lá atrás. De repente, olhas para o filme e achas que vês lá isso, onde antes não vias nada. Ou se calhar até vias, mas claro que só quando temos a chave conseguimos descodificar os códigos que antes eram secretos.

 

AE: Esse plano da família forjada à mesa é então uma segunda chave do projecto, sendo a primeira a fotografia do Sebald. Acreditas – eu acredito um pouco nisso - que, pela maneira como as coisas estão montadas e estão feitas existe quase uma verdade subentendida? O facto deste filme ter sido feito por pessoas que estavam no campo… existe nele quase um desmontar dos planos, como se tratasse de um código de alerta subentendido. Tal como aquele soldado que, num filme de resgate, consegue pedir socorro através de um piscar de olhos.

DB: O realizador era um dos presos, que acabou assassinado em Auschwitz pouco depois...

 

AE: … e se ele ao filmar não estará também a fazer um estudo anatómico de toda a situação, e então percebes que a filmagem daquele corpo é algo que será sempre artificial.

DB: … sim, e de facto, mesmo que não houvesse outra realidade: caos, guerra, extermínio e tudo o que nós sabemos, em volta… Estas eram pessoas que não sabiam das suas famílias há anos, e estavam longe das suas terras, numa povoação que estava preparada para um máximo de cinco mil pessoas e que estava sobrelotada com umas cinquenta mil, portanto, em condições péssimas. O filme foi feito depois, em 1943, mas em Setembro de 1942 morriam diariamente de febre tifóide cerca de cento e quarenta pessoas, o que faz com que fosse impossível que aquelas pessoas não soubessem que obviamente algo não estava bem.

 

AE: Seria impossível que não tivessem essa carga.

DB: Esse peso e essa identidade dentro delas. Mas também é interessante, quando percebemos até que ponto as pessoas parecem ter sido escolhidas “a dedo” para o filme: escolheram-se os elementos, os actores, os figurantes. Um filme é sempre ficção. Num documentário escolhe-se o melhor enquadramento, aquele sofá vermelho fica melhor do que o amarelo, escolhe-se aquela pessoa que tem os olhos maiores e que fica melhor na imagem do que a outra que até tem uma história muito diferente para contar. Então na fotografia isso é tão óbvio.

 

AE: Também a melhor das realidades é aquela que é ficcionada.

DB: Por exemplo, na Segunda Guerra foram feitos inúmeros filmes a cores e, no entanto, a nossa memória desta guerra é a preto e branco. A cor da memória. Quando os americanos chegaram aos campos de concentração e viram as pilhas de corpos levantou-se a questão de filmar a cores ou a preto e branco. E ficou decidido filmar a preto e branco por uma razão prática. A ideia dos americanos era de mostrar este horror aos próprios alemães para que eles percebessem a extensão do que tinha acontecido, e como era ainda mais fácil duplicar e projectar cópias a preto e branco, filmou-se a preto e branco. E eu não consigo imaginar aquele horror em Technicolor. Quando fotografei o crematório em Terezín, o sitio é tão tétrico que a imagem estranhamente ficou a preto e branco.

 

AE: O preto e branco suspende o tempo, o vermelho subjectiva-o. O Coppola no Rumble Fish faz um tratado sobre isso. Um filme a preto e branco sobre uma realidade comum de uma cidade qualquer na América com um individuo daltónico que só vê os peixes com os quais se identifica com cor. Aliás, no filme Black and White reafirmas isto. No vídeo A Perfect Day e com o Um pouco mais pequeno do que o Indiana, a cor torna tudo atemporal e suspenso no estereótipo, ao passo que no Sob Céus Estranhos eu não sei se tens essa relação.

DB: Nesse filme as imagens paradas são sempre a cores e as em movimento a preto e branco, à excepção dos filmes da minha infância. O que tem um pouco a ver com o tratamento que dei também a este filme, é uma filmagem no Rossio que pus em câmara lenta, portanto dá-se a volta à praça muito lentamente…

 

AE: É engraçado que fales nisso. Existe uma relação óbvia entre a máquina de filmar e a metralhadora. O primeiro efeito de câmara lenta câmara lenta usada no seu sentido técnico, foi para ver o efeito de uma bala a perfurar um osso humano. É incrível pensarmos que é o estudo militar que está na base de tudo. Existe um lado mórbido e bélico por detrás de cada filme, sobretudo, como no teu filme, quando se está perante um efeito de câmara lenta que é horrível.

DB: E mesmo o documentário desenvolve-se muito assim: antes ia-se a África e traziam-se as cabeças dos bichos caçados, mais tarde vai-se lá para fazer filmes antropológicos, o que tem muito essa ligação bélica, à caça, ao troféu. A própria Internet é um antigo projecto militar. E tu, no outro dia, fazias essa analogia, a de uma máquina fotográfica ser uma espingarda e uma câmara de filmar ser uma metralhadora. Em relação a isso, gostava ainda de referir que o facto de ter reduzido a velocidade do filme de Theresienstadt fez com que tenha voltado à sua duração original. Pensa-se que o filme originalmente era para ter cerca de noventa minutos. No final da guerra, o filme desapareceu e só mais tarde são encontrados excertos, que estão espalhados em museus pelo mundo fora. Foram esses bocados que trabalhei e reduzi para uma velocidade quatro vezes mais lenta, mais vagarosa. E assim voltamos a ter os noventa minutos que os alemães pretendiam que o filme durasse e que seria, segundo eles, o tempo necessário para que fosses envolvido na mentira daquelas imagens. Com este processo, é reposta uma certa verdade dessa mentira e dessa intenção. Mas sobre qualquer teoria consegues fazer um filme, verdadeiro ou falso. Por isso penso que este filme de Theresienstadt é paradigmático nos tempos em que vivemos.

 

Esta conversa teve lugar em Lisboa em Outubro de 2006. Uma segunda conversa, focada em algumas lacunas da primeira, realizou-se uma semana depois. A 26 de Outubro de 2006 um automóvel foi assaltado no Cabo de Finisterra. Entre os inúmeros objectos roubados, encontrava-se um aparelho Mini-Disc com um disco inserido, contendo a gravação dessa segunda conversa. Ao tentarmos reconstituir a conversa perdida, chegámos à conclusão que tínhamos memórias completamente diferentes da mesma.