De novo, Daniel Blaufuks

Numa história rabínica, um rapaz ao sair da chêder, a escola do ensino básico judaico, pergunta ao rabino “agora que chegou o Inverno e já está escuro durante o caminho de regresso a casa, que oração devo entoar se e quando for abordado pelo diabo?” O rabino responde: “Já aprendeste o Aleph Beth[1]?” “Claro que sei o alfabeto” responde o rapaz, orgulhoso; “Repete o Aleph Beth, e incluirás todas as orações”, responde o rabino.  O que é o Aleph Beth da fotografia? Talvez Daniel Blaufuks nos esteja a dar a resposta, na medida em que tenta captar todo o espectro da sua existência, como foi, como é, e como poderia ser.

Diz-se que o Amor foi o inventor do desenho. Também se poderia dizer que o Amor inventou a fala, se bem que com menos sucesso. Mas a fotografia nasceu ao mesmo tempo que as histórias de detectives, na época em que a grande multiplicidade do presente surgiu com a sua obsessão com a geometria não euclidiana.

Henry Cartier-Bresson definiu a regra da fotografia para o final do século XX nos seguintes termos. “La Photographie”, disse, com a sua característica economia de palavras, “c’est mettre sur la meme ligne la tete, l’oeil et le coeur”[2]. A sua ligação à composição gráfica era quase académica, tal como o era o seu profundo respeito pela realidade, como se percebe pelas suas assombrosas imagens de uma multidão ondulante de chineses em Xangai, em 1949, apertados numa fila no banco à espera de receber o seu dinheiro, ou do corpo flutuante de uma nadadora na água em Itália, em 1933.  Para ele, a fotografia ideal era l’instant decis[3]. Os resultados deste conceito originaram algumas das imagens mais arrebatadoras que conhecemos, nas quais a vida continua a desaparecer, enquanto as imagens permanecem.

Há algum tempo, em Collected Short Stories, Daniel Blaufuks mostrou que a sua tendência é outra. Para este artista, a arte da fotografia contém o potencial de captar a vida na sua totalidade. O seu ideal é retratar algo que estará sempre lá, caso se queira vê-lo.  Está acima de toda a arte na cidade. Todas as grandes cidades não são iguais. Nascem de culturas radicalmente diferentes, e a semelhança está unicamente na mente do sociólogo.  Contudo, aqui, nas fotografias de Blaufuks, indivíduos isolados são captados em instantes em que se encontram divorciados dos seus semelhantes.

Burocracias impessoais, a regra da troca racional e da lei racional, a ausência de contacto pessoal entre os habitantes da cidade - estas são as sombras sempre presentes que constituem o mapa de onde se encontram as coisas, de como estão divididas e de como os veículos físicos dão forma à experiência emocional e humana.

Daniel Blaufuks mostra-nos indivíduos e as suas acções, o que nos acontece quando desempenhamos as nossas tarefas diárias, a forma como participamos de tantas maneiras diferentes nas vidas da cidade. É claro que vivemos em sociedades segmentadas, é claro que nos estamos a reorganizar constantemente, a fim de nos adaptarmos. Contudo, o atlas de imagens abrangente de Daniel Blaufuks mostra que não perdemos a liberdade de agir. Não existe nada de inevitável nas nossas escolhas; nós desenhamos a nossa passagem com as luzes e sombras da nossa vida normal, por vezes escurecida.

Relativamente à pontualidade, calculabilidade e exactidão que dão cor ao conteúdo da nossa vida e que favorecem a exclusão desses traços e impulsos irracionais, instintivos e soberanos, este fotógrafo determina o modo de vida a partir de dentro, em vez de receber padrões esquematizados do exterior. Ele cultiva uma subjectividade altamente pessoal. Daniel Blaufuks não é blasé. Tal como Simmel realçou há mais de um século, a atitude blasé resulta da rapidez e do movimento, de mudanças comprimidas e estímulos dos nervos contrastantes. Uma vida passada na busca sem fim do prazer torna-nos blasé, porque essa procura agita os nervos até à sua reactividade máxima durante tanto tempo que estes acabam por deixar de reagir de todo.

Daniel Blaufuks não perde a sua agilidade, já que impressões inocentes desencadeiam uma resposta sua; as suas reservas de energia nunca se gastam, e ele parece obter novas forças a partir de cada meio. Assim, ele reage a novas sensações com a energia apropriada, de modo que converteu a atitude blasé que é, de facto, a herança de qualquer criança de cidade, numa capacidade interminável que surge para reagir a novas sensações com a energia apropriada. Os meios mais variáveis aumentam incessantemente o seu vocabulário: a experiência eternamente nova faz sempre parte da sua colecção. Ele tomou o seu tempo para registar praticamente todos os sinais de diferença possíveis nas nossas cidades. O seu arquivo engloba tanto o seu futuro como o seu passado. Ser-nos-ia difícil escolher a imagem mais importante entre as suas fotografias mais recentes.

Daniel Blaufuks compõe o seu trabalho a partir de partículas errantes de realidade, cada uma das quais ele sentiu pessoalmente. O mais humilde objecto tem o mesmo valor que o mais precioso; todos podem ser captados e fotografados à luz e à sombra da sua objectiva. A mesma luz incide sobre uma nuvem e sobre a névoa do fumo de um cigarro. A questão não é se um objecto é mais ou menos precioso que qualquer outro. Coisas comuns e fumo – que é belo por direito próprio – revelam-se como dois espelhos que reflectem a mesma verdade. Todo o valor se encontra no olhar do fotógrafo. A intenção de Blaufuks é fotografar coisas, não como sabe ou acredita que são, mas estritamente em conformidade com as ilusões ópticas que constituem a visão humana na sua forma mais simples e imediata.

Ele propõe-se criar um sentimento de ambiguidade, de modo que o espectador nunca pode ter a certeza do que é que na imagem é um registo de facto objectivo e o que é visto directamente no lugar. O seu trabalho revela a presença de uma daquelas realidades invisíveis em que deixámos de acreditar, mas à qual voltamos ao sentir que Blaufuks tem força suficiente para dedicar toda a sua vida. Ele é o artista que aplica, impressão a impressão, a luz e a escuridão, as cores misteriosas de um universo infinitamente valioso. A magia destas imagens é prova de que existe algo para além do vazio que até agora encontramos no amor na cidade.

 

Gradualmente, à medida que a sua obra é desvendada, as características libertam-se, uma a uma, das sombras com o padrão da noite e do dia, e, elevando-se em direcção à sua objectiva, deixam que os seus corpos nus emirjam, surjam e parem no limite do seu curso, sobre a superfície luminosa e sombreada sobre a qual aparecem brilhantes figuras. Para sempre separadas dos mortais, o reino transparente e umbroso ao qual servem de fronteira nas suas plenas superfícies líquidas, olhos límpidos e espelhados em simples obediência às leis da óptica e em conformidade com o seu ângulo de incidência. Para lá dos limites das páginas, afastando-se dos limites do domínio da imagem, continuamos a virar as páginas, sorrindo a cada momento perante uma cara ou uma cabeça reclinada, um sorriso apologético ou uma profundeza sombria. De todos estes recuos para o limiar do qual o nosso brando desejo observa os trabalhos de um homem que não deixa ninguém aproximar-se deles, mas que usa a sensação como meio para estimular a memória do intemporal. A sua intuição espiritual, que se encontra na origem do seu impulso criativo, tem de ser expressa na linguagem das coisas materiais. Tal como todo o pensamento válido tem as suas raízes na vida quotidiana.

Proust afirmou, ‘Uma obra de arte que contém teorias é como um artigo cuja etiqueta de preço foi retirada’. Daniel Blaufuks compreendeu que conseguiria expressar melhor as suas ideias utilizando objectos concretos para esse fim, porém isso não significa que ele não consiga reconhecer no seu trabalho todos os elementos de uma teoria metafísica. A percepção, o sonho, a memória, a realidade do mundo exterior, o quebra-cabeças das intuições do espaço e tempo – é-lhes reconhecida a sua natureza e é-lhes dada vida nestas páginas. Tudo isto constitui um método de descoberta. A sua arte destrói obstáculos, as realidades feitas que se interpõe entre o nosso espírito e o real. Daniel Blaufuks continua a estabelecer relações que ligam um par de factos a um par de factos.

Se existe uma ligação precisa entre a inteligência humana e o universo, esta permanece desconhecida e talvez seja impossível de conhecer. Cada obra de arte definiu o seu próprio campo de tempo. Talvez seja essa a sua maior liberdade. Nestas novas condições das nossas vidas, somos obrigados a reconsiderar tudo à luz deste mundo, completamente diferente do mundo que abandonámos, ‘a fim de voltar a viver sob a influência das leis desconhecidas a que obedecemos porque carregamos nos nossos corações os seus ensinamentos, sem saber por quem lá foram inscritos – aquelas leis das quais nos aproximamos com cada trabalho profundo do intelecto e que apenas se mantêm invisíveis para os tolos’[4].

 

 

(M.Proust: The Captive. Trans. C.K. Scott-Moncrieff. NY, Random House, 1941)

 



[1] Alfabeto hebraico (N.T.)

[2] A fotografia é meter na mesma linha a cabeça, o olho e o coração. (N.T.)

[3] O instante decisivo. (N.T.)

[4] Tradução livre da versão inglesa de A Prisioneira, M.Proust: The Captive. Trad. ing. C.K. Scott-Moncrieff. NY, Random House, 1941