Um combo para ver
Segunda-feira de uma manhã de Abril. O auditório do Centro Cultural de Lagos está ocupado com a projecção de um filme para uma escola, a pedido de um professor. O filme é "O couraçado de Potemkine", de Sergei Eisenstein, e a cópia veio do Cineclube de Faro. Os alunos daquela escola - não chegámos a saber qual - não precisaram de vir à Cinemateca (onde por vezes certos clássicos contemplam a sala meio vazia). Os alunos adormeceram, não gostaram? Não sabemos, nem interessa. O que interessa é que puderam ver, e, eventualmente, interessar-se, sem forçar uma deslocação de 300 km. É isto a descentralização, embora se deva notar que ela é fruto mais de paixões individuais do que de políticas institucionais; mas é por isso mesmo que um centro cultural que permite acontecimentos como aquele deve merecer a nossa atenção.
O Centro Cultural de Lagos tem agora, desde o Verão passado, o Xana como colaborador na programação, artista plástico nascido em 1959, radicado na cidade desde os anos oitenta e nela interventivo, do grupo dos "homeostéticos".
A exposição agora patente, resultado já da sua iniciativa e da preocupação em ligar a cidade de Lagos com a "capital", é uma mostra de Daniel Blaufuks, intitulada "Combo".
Esta mostra consiste numa instalação de materiais diversos: um conjunto de vídeos, doze fotografias e quatro objectos "de visionamento".
As fotografias não são inéditas, tendo já estado em anterior exibição na exposição "Arquivo e Simulação" do LisboaFoto, em Julho de 2003 (Centro Cultural de Belém). São imagens de grande dimensão, de proveniência digital, que dialogam, na sala de exposições do centro, com quatro objectos, concebidos como caixas de visionamento iluminadas, em madeira, de diferentes formatos e que lembram antigos mecanismos ópticos; se espreitarmos pelo orifício, podemos ver, em cada uma delas, uma imagem (um postal).
Numa sala de projecção podemos visionar um conjunto de vídeos realizados por Blaufuks, que remetem para a experiência mediática da música e da televisão (do "videoclip").
Com esta exposição, cujo título foi inspirado num conceito originário do jazz que significa combinação instrumental, Blaufuks constrói uma "assemblage" de objectos que também se combinam entre si para, de diferentes modos, envolverem o visitante num percurso visual.
Não é pois um conjunto de instrumentos que se fazem ouvir, mas um conjunto de instrumentos que nos fazem ver.
É sempre, de uma forma ou de outra, a experiência urbana que condiciona a visão do mundo de Blaufuks. A experiência urbana como experiência da fragmentação, mas também de fricção (de choque permanente e de passagem). O seu trabalho reflecte a forma como as imagens são, no mundo contemporâneo, uma espécie de "envelope" que envolve o sujeito e o impede de pensar (porque pensar seria trágico).
Por essa razão, as quatro "máquinas para ver coisas", que se espalham pela sala da exposição, têm uma conotação barroca, como se nada mais nos restasse que a contemplação encapsulada de imagens recicladas de outras imagens. O que se interroga aqui, como noutras propostas de Blaufuks, é a capacidade ou o potencial da imagem enquanto veículo de ligação ao mundo externo, de contenção dessa experiência de fragmentação, como uma espécie de segunda pele. Uma pele de contacto, de protecção. Daí que os vídeos incorporem sequências analíticas onde imagens míticas, entre o público e o privado, são revisitadas: vemos Elvis Presley, Bob Dylan, Jean Seberg. O simples movimento encantatório de uma medusa no espaço aquático. Uma estrada sem fim, espaço mental para todas as deambulações. Imagens de música, de cinema, de outras imagens.
Mas nada é ao acaso. Não se trata aqui de fazer fluir uma memória em directo. O trabalho de Blaufuks é planeado de forma inversa, criando uma espécie de sistema controlado por um rigoroso critério estético. São imagens para fazer imaginar, que colocam o visitante em posição de tomar consciência do seu poder viciante, mas também estruturante do homem contemporâneo.
A exposição é acompanhada de um pequeno catálogo que se refere apenas aos vídeos e conta com um (muito) interessante texto de Diogo Lopes.