HOJE É SEMPRE ONTEM

 

                                                 Dar sentido ao que se vive
                                                 Mesmo que o espaço flerte com o absurdo
                                                 Aprender a construir a dor
                                                 Mesmo que o sarcasmo engula o movimento
                                                 Apagar as centelhas do coração
                                                 Para transformar minha carne em pedra
                                                 Rir da moral acorrentada e contrita
                                                 Para acreditar apenas na ilegitimidade absoluta do mundo
                                                 E na derrocada definitiva do mito humano.
                                                                                                              Célestin Monga  

                                                         
        
“Hoje é sempre ontem”, título desta exposição do artista português Daniel Blaufuks, aparece escrito em um pequeno trabalho de Wesley Duke Lee pertencente à coleção Gilberto Chateaubriand exposta no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Esta frase está escrita sobre uma antiga fotografia colada junto a uma referencia da bandeira brasileira. O país do futuro surge tingido por uma suave melancolia. Os principais clichês de um Brasil tropical, alegre e exuberante por natureza, sem deixarem de ter sua relevância, escondem, sob o fino véu da malandragem, uma insegurança existencial e civilizatória. A pujança de uma terra onde plantando tudo nasce é tensionada cotidianamente por uma sociabilidade que consome o outro no pathos da proximidade total.
         Em uma breve correspondência por email acerca desta exposição, Blaufuks comentou: “são fotogramas de um filme que é o meu embate com a paisagem do Rio de Janeiro. Esta é linda, podre, tropical, melancólica, erótica, decadente entre muitas outras definições possíveis. É, claro, a visão de um europeu.” Este conjunto de imagens revelam a tensão, constantemente vivida por nós cariocas, entre intensidade e decadência. O olhar do estrangeiro, assim como o da criança e do convalescente, se deixa admirar pelas surpresas do que se mostra pela primeira vez, sem a anestesia dos hábitos e da repetição. Não é de hoje que o Brasil conta com o olhar de fora para perceber melhor suas singularidades, no que elas têm de potente e inadequado. Os vícios de uma história colonizada misturam-se ao desejo de ser outro, de não saber-se o que se é, de um país que se vê sempre prensado entre o não ser e o ser de todas as maneiras.
         Nessa seqüência de imagens/paisagens somos surpreendidos por uma temporalidade, quiçá uma luminosidade, onde se irmanam serenidade e desencanto. A pobreza não é nunca miserável, as ruínas se insinuam pelos cantos das salas, a confusão urbana aparece contida e explosiva, as fisionomias são mais graves que alegres (coisa estranha numa cidade que gosta tanto de se ver rindo), as flores e frutas condensam uma sensualidade que não está nas praias, que são mais místicas do que físicas.     
         A câmera que circula pela cidade traduz a experiência do fotógrafo exigente misturada à surpresa do viajante disponível. Por um lado, uma enorme atenção à dimensão formal da imagem: o enquadramento, a luz, as texturas, os contrastes, a edição, tudo ali é resultado de um olhar que faz escolhas precisas. Por outro, é como se escapasse uma viscosidade própria a uma realidade estranha, ao mesmo tempo familiar e inusitada, dando a algumas fotografias um cheiro acridoce, curtido pelo tempo desacelerado da umidade, da maresia e do descaso das esquinas cariocas.
         Em um dos fotogramas apresentados, lemos uma frase de Carlos Drummond de Andrade; “viajar em fotografias / sentir-se imagem flutuando entre imagens”. Do retrato tradicional do pai que posa segurando o bebê, às apropriações de fotos antigas, tudo se faz imagem e produz no espectador a sensação do seu próprio devir-imagem, a sua multiplicação assustadora nos registros digitais. O que interessa neste conjunto/fluxo é o efeito das justaposições, as singularidades que se apresentam através das relações entre os fotogramas, cruzando vários tempos e sensações em um agora plural, “dando sentido ao que se vive, mesmo que o espaço flerte com o absurdo”.  
                                                                

  Luiz Camillo Osorio – Abril 2011