CONVERSA COM VISTA PARA de Maria João Seixas
DANIEL BLAUFUKS
Ainda não chegou aos quarenta. Tem uma cor de olhos, rara, que não consigo definir: não é cor de avelã, nem amarelo, nem castanho claro, talvez camurça, ou antílope. É isso, tem olhos cor de camurça, igual ao pêlo dos antílopes. Disse-me para ir ter com ele a sua casa, um pequeno apartamento em espaço corrido e circular, quase aberto, envidraçado para a luz dos dias e para a sombra das noites. Nas redondezas do Saldanha, perto do sítio onde nasceu e onde passou os primeiros anos da infância. Que sabia eu dele? Que era judeu e que era fotógrafo, que realizara dois filmes (uma curta-metragem e um documentário de cerca de uma hora), que andava regularmente em viagem, em direcção a uma grande variedade de destinos, ora vizinhos ora longínquos, uns muito cartografados, outros mais imprecisos e que se punha, por vezes, a escrever sobre as rotas visitadas (mais as humanas que as paisagísticas ou topográficas), dando a impressão que as imagens que nelas e delas fizera só ganhariam sentido se encostadas a palavras. Que queria então eu saber dele? Queria ouvi-lo contar-me, se para tal lhe assistisse a vontade, as motivações das suas derivas, o que procura, o que espera encontrar, o que de todos os caminhos vai conservando debaixo da pele e o que é que faz deles em seguida, quando regressa a casa, quando pára. Será que pára? Abriu-me a porta a sorrir e, enquanto uma ária de "A Flauta Mágica" de Mozart reforçava o seu acolhimento, guiou-me pelo espaço onde vive e, com delicadeza, propôs-se preparar um café ou um chá. Sentámo-nos numa mesa estreita, frente a frente. Sorriu sempre: enquanto ouvia as perguntas, enquanto se punha em busca da resposta mais justa, enquanto falava. Viajei com ele, durante a tarde do nosso encontro, por sítios do mundo que nunca visitei e onde me deu a conhecer algumas das pessoas que procurou encontrar ou com quem se cruzou. Saí com a impressão de ter estado à conversa com um singular "pisteiro". Dos que nos guiam, gulosamente, até lugares onde seres especiais nos aguardam. Sem que o suspeitássemos!
MJS Daniel, diga-me quem é.
DB Essa é que é a pergunta mais difícil. Não sei se saberei responder. Nas palavras de Mário de Sá Carneiro sou "um fixador de instantes". Nas de Teixeira Gomes serei, talvez, "um caçador de mariposas". Mas, de facto, não seiŠ
MJS Bom, não estamos mal. Entre os "instantes" e as "mariposas" para onde é que mais balança o seu coração?
DF Para as "mariposas".
MJS E a fotografia? Não é por aí que os "instantes" são também fixados?
DB Sim, mas não só. Há instantes da vida que não são captáveis pela fotografia, que é um fraco substituto para muitas outras coisas, coisas que não existem mecanicamente. E, atenção que, o fixador de instantes do Sá Carneiro é um potencial "serial-killer"Š.sendo a morte, o congelamento, a única forma de fixar o momento.
MJS E do olhar? A fotografia também é um fraco substituto do olhar?
DB Outra vez uma pergunta complicada Š
MJS Vamos então às simples. Que idade tem? O que é que gosta de fazer?
DB Tenho trinta e nove anos. O que gosto de fazer? Também é complicado. Gosto de procurar, gosto mais de procurar do que propriamente de encontrar.
MJS As imagens sobrepôem-se aos sons nessa sua procura?
DB Acho que a uma certa altura também nos tornamos naquilo que imaginamos que somos. No início desejamos uma coisa e depois transformamo-nos nela. Hoje em dia é óbvio que penso em termos de imagens: acordo e adormeço a pensar em fotografia, em imagens fotográficas.
MJS Anda de câmara ao ombro e fotografa todos os dias?
DB Não. Às vezes penso que seria bom que assim fosse, mas fotografo por impulsos interiores ou porque vejo qualquer coisa que me leva a pensar que gostaria de reagir a ela, fotografando-a.
MJS Sem lhe querer tirar o "retrato", mas também por um impulso interior, apetece-me saber mais de si, do seu caminho. Onde nasceu e por onde andou até assentar(?) em Lisboa como fotógrafo?
DB Nasci em Lisboa, aqui próximo, numa Maternidade que havia na Av. da República. Aos doze anos fui para a Alemanha com a minha mãe.
MJS Blaufuks é de origem alemã?
DB Não, é um apelido polaco. Os meus avós maternos eram judeus alemães, refugiados em Portugal. Do lado do meu pai, eram judeus polacos, também refugiados em Portugal. Os meus pais conheceram-se cá.
MJS A Alemanha e a Polónia interessam-no como lugar de origem dos seus?
DB A Alemanha interessa-me muito, também porque vivi lá alguns anos, os suficientes para que uma grande parte da minha cultura seja alemã. Os meus avós maternos vieram para Portugal relativamente cedo, em 36. Os avós polacos do lado do meu pai, lado da família com que tive sempre menos contactos, vieram ainda mais cedo, nos anos vinte, época em que houve uma forte emigração polaca, por causa dos pogroms da Polónia, Uns vieram a caminho dos Estados Unidos, outros, como os meus avós, escolheram ficar por cá.
MJS Soube-se judeu desde muito cedo? A sua família era praticante?
DB Acho que me sei judeu desde sempre. Os meus avós não eram muito religiosos, íamos à Sinagoga em dias de festa, celebrava-se a Páscoa em casa, eu fazia as perguntas porque era o mais novoŠ Pouco mais, mas era o suficiente para ter a consciência de que era judeu. Lembro-me, no entanto, de andar na escola e achar estranho os meus colegas e amigos irem passar férias nas aldeias do Norte, com os avós e os primos e eu não ter nada disso. Essa era a grande diferença. De repente apercebi-me que a minha família era diferente, éramos cinco pessoas e estávamos todos juntos em Lisboa. Os outros estavam no Canadá, nos Estados Unidos, de vez em quando chegavam cartas com fotografias, esporadicamente havia uns que passavam por Lisboa e visitavam-nos. Há quatro anos, um dos meus primos do Canadá veio passar uma semana em Lisboa e ficámos muito amigos..
MJS Passemos aos anos que viveu com a sua mãe em Frankfurt, na Alemanha. Acabou o liceu já com vontade de estudar fotografia, de se preparar para ser fotógrafo?
DB Não, isso aconteceu depois de regressar a Portugal. A adaptação à Alemanha foi, para um miúdo da minha idade e habituado a uma cidade como Lisboa, bastante dura. Não falava sequer a língua. Acabei o liceu e fiz depois um curso de Gestão, daqueles mais práticos, em que se estuda e, ao mesmo tempo, começa-se logo a trabalhar. Mas como queria sair da Alemanha (país de que passei a gostar, porque tem uma riqueza cultural muito grande, tendo também lados de organização e disciplina que me enervam muito), a um dado momento voltei para cá.
MJS E?
DB E comecei por trabalhar com o meu avô, servindo-me dos meus conhecimentos de gestão. Fui depois para o Porto, para uma empresa que importava bombas hidráulicas e de rega por aspersão. Tentei também matricular-me na Escola de Cinema, não entrei por problemas de equivalência e inscrevi-me, ainda a trabalhar, no A.R.C.O., no curso de Fotografia, que não acabei. No meio disto tudo surgiu o Independente. O desafio de poder colaborar na criação de uma imagem diferente, para um jornal diferente, foi mais forte do que o resto. Desisti de tudo e, com a Inês Gonçalves e, mais tarde, o Álvaro Rosendo, mergulhei a fundo no projecto fotográfico do jornal. O trabalho que se fez no caderno 3 do jornal, com aquelas duas páginas de fotografias, contribuiu, acho eu, para que as pessoas começassem a olhar de outro modo para a fotografia em Portugal. Naquele tempo havia muito poucas revistas que trabalhassem a fotografia como nós fizémos no Independente. A partir daquela experiência o universo das publicações mudou. Colaborei depois, em regime de free-lance, em várias revistas, a Marie Claire, por exemplo e, com o andar do tempo fui eu próprio radicalizando a minha forma de trabalhar e o que queria fazer, o que já não encaixava tão bem no que se publicava, para não falar no retrocesso que, entretanto, se começou a fazer sentir no panorama editorial português onde a fotografia passou a servir quase só para encher páginasŠ Dei aulas de fotografia no A.R.C.O. e nos Maumaus.
MJS Os Maumaus?
DB Os Maumaus eram, como gostávamos de dizer, um Centro de Contaminação Visual, de que fui fundador, com o Álvaro Rosendo e o Paulo Mora. A ideia inicial era que aquilo fosse uma escola, um espaço de discussão, um lugar de exposições. As dificuldades que presidem a estas iniciativas são enormes e eu saí ao fim de um ano, porque acabei por perceber que não tinha a disponibilidade mental para estar ali como devia ser. Os Maumaus continuam a existir, com outra direcção e era bom que houvesse mais coisas do género. Não sei se se lhe pode chamar um espaço contra-corrente, mas é seguramente um projecto para a prática e o apoio de outra ou de outras correntes.
MJS O vídeo e o cinema vieram a seguir?
DB Mais tarde. Ou nem por isso, vieram por camadas. Eu vejo o meu processo como uma espécie de continuidade, em que os diferentes extractos se vão encaixando, com a fotografia a funcionar como elemento aglutinador. E acho que será sempre ou cada vez mais esse elemento. Penso também que um fotógrafo dos anos 90, e dos anos zero em que agora estamos, não necessita de ser simplesmente uma pessoa que faz imagens sobre papel. Historicamente é tão grande a relação da fotografia com a tecnologia que, de facto, tudo pode ser fotografia. Uma palavra pode ser fotografia. E isso é fascinante!
MJS Descodifique-me essa de uma palavra poder ser fotografia.
DB Uma palavra pode ser fotografia porque, da mesma maneira que uma imagem não precisa de ser uma boa fotografia para ser uma boa imagem, no sentido de que não precisa de ser esteticamente perfeita, necessita é de criar um universo para a pessoa que a está a ver que a faça lembrar-se de outras coisas, que a faça pensar noutras coisas, que tenha várias leituras possíveisŠuma palavra é a mesma coisa. Uma palavra pode ser uma imagem. Se eu puser uma imagem de uma guerra, ela é mais redundante e mais específica, porque corta a imaginação de uma pessoa, do que se eu puser a palavra - guerra. Qualquer imagem do Holocausto é talvez menos forte do que a palavra &endash; Holocausto - em que cabem as fotografias assustadoras dos corpos nus empilhados, mas também todo o sofrimento individual. A palavra é menos gratuita.
MJS A sua curta-metragem chama-se "Black and White". Não me lembro da existência de diálogos. Há palavras no filme?
DB Há dois ou três diálogos muito curtos. O filme fala de uma rapariga que começa a ver a preto e branco. Isto do preto e branco é também uma brincadeira com o mundo da fotografia, porque temos a tendência para acreditar que as fotografias a preto e branco é que mostram a realidade. Mas o real e o mundo não são a preto e branco. Ao mesmo tempo há no filme uma sucessão de imagens a cor, que ela não vê, ou que ela imagina que não vêŠ
MJS O seu documentário - "Sob Céus Estranhos", como o belo título de um livro de Ilse Losa, já não é uma "brincadeira" de tipo experimentalista, parece antes animado de um fôlego de investigação histórica, de alguém que quer ajustar umas certas contas com a memória e contrariar o esquecimento.
DB O documentário é a história dos judeus que passaram por Lisboa durante a guerra e dos que por cá ficaram, entre os quais os meus avós. O número dos que passaram vai de cinquenta a duzentos mil e apenas cinquenta ficaram. É irrisório! Tentei pesquisar porque é que só ficaram tão poucos. Quis também desmistificar um bocadinho a ideia de que Portugal foi um país acolhedor. Não penso que o tenha sido. Sim, acolheu, porque os deixou passar. Mas não, não acolheu, porque eles não puderam ficar, não obtiveram autorização de residência. Os que ficaram, na sua maior parte já cá estavam, como os meus avós, tinham chegado antes da guerra começar. E muitos não conseguiram sequer entrar.
MJS Não tiveram a sorte de passar por Bordéus, pela solidariedade, empenhada e corajosa, de Aristides Sousa Mendes.
DB É verdade. Graças a Sousa Mendes, cônsul de Portugal em Bordéus, entraram muitos mais do que normalmente teria acontecido. Sim, Portugal, país neutro, foi simpático, mas poderia ter sido muito mais. As razões políticas sobrepuseram-se às razões humanitárias. Naquele tempo como, infelizmente, hoje em dia. Portugal teve uma atitude tacanha e, com isso, perdeu, entre outras coisas, a oportunidade histórica de enriquecer o seu património artístico, em pintura, em objectos de valor, para não falar, é evidente, no mais importante valor de todos - o humano, porque passaram pessoas de grande craveira intelectual, científica e artística que poderiam ter ficado em Portugal. No Ministério dos Negócios Estrangeiros encontrei o caso de um judeu alemão que, antes de ver a sua biblioteca de livros raros confiscada e queimada pelos nazis, ofereceu-a ao governo português, se pudesse vir para Portugal. O pedido foi recusado, "para não criar precedentes"! Bom, o filme, por um lado, conta isso e, por outro lado, também me interessa contar o modo como a política e os acontecimentos mundiais se entrelaçam com as histórias das pessoas e das famílias. Eu sou um produto, quer queira, quer não, de uma guerra que fez com que os meus avós viessem para Portugal, ou melhor, sou um produto das leis anti-semitas de um senhor chamado Hitler. O filme tenta também desvendar um bocadinho dos encontros e desencontros da minha família em Portugal: como é que o meu tio-avô conheceu a minha tia-avó, uns viviam em Lisboa, outros estavam na Ericeira e nas Caldas. Por aí.
MJS Utiliza depoimentos directos dos seus familiares?
DB Não. Não há testemunhos directos. Há um texto meu corrido, off, cortado por partes de cartas do meu avô, onde conta as suas primeiras impressões, e há imagens de Lisboa com textos de escritores que, na altura, também passaram por Lisboa e escreveram sobre a cidade. Os meus avós não eram intelectuais, não pertenciam ao mundo desses escritores. Mas um deles refere num diário que foi parar a casa dos meus bisavós, na Rodrigo da Fonseca. Alugaram-lhe um quarto. As imagens de Lisboa, à volta do Rossio, foram feitas por um senhor - Eugen Schuftan, que trabalhou antes com Fritz Lang, no "Metropolis" e, posteriormente, ganhou um oscár com "O Jogador" com o Paul Newman. Encontrei-as nos arquivos da Cinemateca, no ANIM. Foi uma sorte. São imagens muito simples, muito bonitas, filmadas dentro de um eléctrico que dava a volta ao Rossio, feitas por um estrangeiro, um judeu alemão que, na altura em que o meu avô escreveu aquelas cartas, o senhor Schuftan andava também, na mesma cidade, a registar em imagens as suas primeiras impressões. Na cidade onde nasci e onde vivo - Lisboa. O filme é, por tudo isso, uma história que eu tinha que contar. Espero que venham outros e contem esta história, de uma outra maneira.
MJS Antes de se sentir alemão ou português, sente-se judeu?
DB &endash; De novo uma questão complicadaŠ Tal como o Robert Frank lhe disse numa entrevista, o judaísmo vai ganhando importância dentro de nós com o passar dos anos. Não, necessáriamente, de uma forma religiosa, mas de um modo cultural.. É a razão porque eu estou cá, a razão que levou os meus avós a terem sido expulsos, é também um aviso, um aviso constante, também em relação a outras minorias. É uma história comum. O Holocausto reforçou essa filiação histórica. O meu avô viveu amargurado por ter sido posto de lado, por ter sido posto fora de uma comunidade a que ele julgava pertencer e onde se sentia perfeitamente integrado, e que era a comunidade alemã, não a judaica. Isso foi o que mais os surpreendeu! No fundo, depois de Auschwitz somos todos judeus.
MJS Mudemos agora a bússola para outras direcções, as dos destinos de algumas das suas viagens. Sente-se um viajante compulsivo, um judeu errante, um viageiro sem descanso?
DB Viageiro?
MJS É uma palavra de que gosto muito.
DB Viajar é a tal história, é sempre uma procura e também um sinal de alguma insatisfação. Além disso é uma forma hábil de desaparecer, uma acto de magia. E o percurso pode ser mais importante do que o destino. É menos planeado do que às vezes parece. O que corre mal também é, a posteriori, sempre mais interessante do que o que corre dentro dos planos. Enfim, corresponde a uma necessidade.
MJS Organiza-se minimamente para as suas viagens?
DB Minimamente. É preciso ter alguma disponibilidade. Cheguei recentemente da Índia, onde estive mês e meio, a convite de um realizador indiano que conheci, por acaso, numa outra viagem que lá fiz, há cinco anos. Mandou-me um e-mail em que dizia que ia começar a rodagem de um documentário sobre os fundamentalismos religiosos na Índia (de que sabemos muito pouco!) e perguntava-me se eu queria juntar-me à equipa. Foi o suficiente para me pôr a caminho! Fizémos, durante seis semanas, cerca de dezasseis mil quilómetros, numa média de trezentos quilómetros por dia, em estradas péssimas. Fomos de Bombaim até lá cima, ao Tibete indiano. A viagem foi muito dura, as condições de alojamento eram sumárias, mas vi pessoas absolutamente mágicas. Na zona de Bhuj, por exemplo, arrasada há dois anos por um terramoto, tão violento que matou vinte mil pessoas (sete vezes mais do que no World Trade Center!), ver os sobreviventes a reconstituirem as suas vidas, a reconstruirem as suas casas, foi uma experiência rara, muito intensa.
MJS Antes de continuar, explique-me como é que conheceu esse realizador indiano, a ponto se ser possível um desafio desta natureza?
DB Foi há cerca de cinco anos, fui à Índia e fiquei instalado numa fortaleza de um marajá que aluga quartos. Dei-me conta que, para além de mim, que era o único ocidental, estava na fortaleza uma equipa de filmagens a rodar uma série de televisão, uma história estranhíssima passada na Idade Média indiana. Pus-me um dia a observar as filmagens, quando alguém se aproxima e me pergunta &endash; "So, what do you think about Spielberg?" Percebi que não podia falhar a resposta, disse já não me lembro o quê e ficámos amigos. Chama-se Saeed Mirza e é um senhor com sessenta anos. Acabei por descobrir que ele é um dos personagens dos "Versículos Satânicos" do Rushdie, o jardineiro caçador de borboletas (voltamos às mariposas!).Voltei mais tarde a Bombaim e estive em casa dele, começámos a trocar e-mails e agora surgiu esta oportunidade. Trata-se de um documentário para uma ONG, a ActionAid, e as minhas fotografias servirão eventualmente para ajudarem a promover o trabalho desta organização. Espero que as fotografias sejam de alguma utilidade para eles. O filme vai à procura de quem normalmente não tem voz e faz falar essas pessoas, dá-lhes a voz que ninguém lhes reconhece o direito de terem.
MJS Desses dezasseis mil quilómetros, houve algum sítio que o tenha impressionado mais do que qualquer outro?
DB Ladakh, em Cachemira, uma zona mesmo lá em cima, que faz fronteira com a China e com o Paquistão. É uma ramificação do Tibete e chega-se lá pela estrada mais alta do mundo. A cidade de Leh fica na antiga rota da seda. Dizem que é o único sítio do mundo onde se pode apanhar sol quente na cara e ficar com os pés congelados se estiverem à sombra. Podem visitar-se inúmeros templos budistas e é lá que está o palácio que supostamente serviu de modelo para o célebre palácio de Lhasa, no Tibete. Ladakh não é a Índia, já está muito distante da Índia.
MJS Zona perigosa?!
DB &endash; Sim, mas nós estávamos no lado menos perigoso, o lado direito. Mais cá para baixo estivémos mesmo junto à fronteira com o Paquistão, onde assisti a uma coisa impressionante, na fronteira que esteve aberta até há poucos anos: todos os dias, às cinco da tarde, de um lado e doutro abre-se e fecha-se o portão. É uma cerimónia simbólica. Dos dois lados da fronteira, em espelho, montaram-se bancadas para as pessoas poderem assistir. O exército indiano e o exército paquistanês, também em espelho e exactamente com a mesma coreografia, fazem um espectáculo agressivo, com marchas e com as pessoas de cada lado, nas tais bancadas, a gritarem e a acenarem bandeiras gigantes. Todos os dias, às cinco da tarde.
MJS Não me leva a uma outra rota, antes de terminarmos?
DB Pode ser Marrocos?
MJS Gosto muito.
DB Uma das viagens a Marrocos, foi a Tânger. Saí de Lisboa, com a morada do Paul Bowles no bolso. Para o conhecer e fotografar. Sem nada combinado. Bati à porta e expliquei-lhe ao que ia e, sobretudo, que punha o meu tempo à sua disposição, se ele assim o quisesse. Penso que isso foi o que mais lhe agradou. Era frequentemente procurado por jornalistas e fotógrafos, com pressa de fazerem o trabalho para o dia seguinte.
Se não fosse a fotografia, nunca o teria conhecido e teria ficado mais pobre. Fiquei por lá três semanas, visitei-o todas as tardes, acompanhei-o nas suas idas ao mercado e, creio, fiz um amigo. Deu-me depois dois contos, um inédito e outro já publicado no Japão, para acompanharem o livro que entretanto fiz com as fotografias que dele tirei &endash; "My Tangier &endash; Paul Bowles", editado pela Difusão Cultural, em 1991.
MJS Antes de terminarmos, atrevo-me a transcrever um extracto de um texto seu, uma homenagem a Paul Bowles, já depois da sua morte:
" Sem telefone ou televisão, a sua casa era uma mini-fortaleza. Havia barreiras a transpor: o seu amigo Mohammed Mrabet, o escritor Rodrigo Rey Rosa ou mesmo a desconfiança natural de Bowles. Mas uma vez iniciado neste círculo, uma pessoa sentia-se em casa. Chá, bolachas e uma lareira sempre acesa serviam de estímulo à conversa que, à altura da minha primeira visita, girava, naturalmente, em torno da eminente guerra do Golfo. Nas nossas cabeças a guerra ia durar muito, meses, talvez anos. Ninguém imaginava que tudo se passaria tão rápido. Da janela de Bowles observámos o recolher da bandeira americana, no prédio da Voice of America, em frente. Para ele era a última vez que via a bandeira. Todos os cidadãos de Tânger e de Marrocos tinham já sido evacuados, mas Bowles recusara-se. Preferia, como me explicou, ir para o Inferno do que para Washington. Não porque lhe agradasse a ideia do Inferno, mas porque já conhecia Washington, e assim essa ideia agradava-lhe ainda menos."
MJS E agora, a sua palavra de eleição.
DB Listen to the pictures. Ouçam as imagens.