.
Viajar para
Lado Nenhum
Sábado, 22 de Fevereiro de 2003
(Público)
Margarida
Medeiros
"Collected
Short Stories" designa um conjunto de dípticos
construídos com imagens obtidas em diferentes lugares (Lisboa,
Berlim, Nova Iorque, entre outros), que ocupam agora a sala de
exposições temporárias do Centro de Arte Moderna
da Fundação Calouste Gulbenkian. A estas imagens
associa-se, na exposição, um vídeo, que é
projectado do tecto e pode ser visionado a partir de um escadote, que
simultaneamente permite ao visitante observar a
exposição de um ponto de vista mais unificado. O livro,
editado pela Gulbenkian, está exposto logo à direita,
na entrada, numa pequena vitrine, integrando-se no projecto da
exposição.
A
série - da qual se pode ter, no livro ou na "homepage" de
Daniel Blaufuks, uma visão mais alargada, com 31 elementos -
instala-se sobre a ideia de contiguidade, ou de vizinhança, na
construção dos dítpicos. Essa
relação de vizinhança faz-se quer por via
puramente semântica (caso da torre da TV de Berlim e do
avião, por exemplo), quer por via mais formal (cores,
grafismos). Cada díptico possui um título, que unifica
a dupla de imagens e abre o intervalo para a sua
relação.
Com o
título podemos, desde logo, encostar-nos à ideia
literária: histórias de cidades, de viagens, de
errância, que se detectam pela diversidade de paisagens
referidas e personagens representadas. Aliás, o livro imita o
grafismo dos livros da Penguin Books, criando expressamente um
quiproquó de alusões literárias.
Tudo indica,
aparentemente, que Daniel Blaufuks caminha, neste trabalho, nesse
sentido da literariedade da fotografia, das suas potencialidades
narrativas e diarísticas. Essa é uma imagem que o seu
trabalho desde o início conota ("Para mais tarde recordar",
Galeria Ether, 1990), e a que frequentemente se tem intencionalmente
ligado ("My Tangier", 1991, "London Diaries", 1994, "O livro do
desassossego", Galeria Luís Serpa, 1997 , "Lisboa,
Exílio, Pessoa, Saramago", Galeria Luís Serpa, 2001; ou
o seu mais recente trabalho, o documentário "Sob céus
estranhos", 2002).
Mas
há agora qualquer coisa que rompe com a relação
ambígua, sub-reptícia, pouco clara, e ao mesmo tempo
fascinada, da fotografia com a narrativa e a literariedade.
Em primeiro
lugar ela deixa de ser ambígua, para passar a ser decidida e
decisiva. É a ideia do produto híbrido
(livro/exposição/video, por um lado;
fotografia/narrativa, instante/sequência, por outro), como
objecto com existência própria, que se afirma aqui. Essa
ideia de totalidade está também expressa na
intervenção nas paredes da exposição,
pintadas de um vermelho-ocre, inspirado nas cores do Hermitage de S.
Petersburgo, e que convoca assim ideia de instalação.
Não existe de um lado a imagem fotográfica, do outro a
imaginação literária.
Em segundo
lugar, as imagens propriamente ditas tornaram-se muito depuradas.
Insistem no fragmento, na fugacidade empírica, mas procuram
tonalidades muito quentes e muito frias, linhas e enquadramentos mais
rectilíneos, grandes planos frontais de rostos ou retratos
completos - embora o flou e o desfocado não deixem de estar
presentes. Uma espécie de crueldade visual que até
agora estava quase ausente dos trabalhos de Blaufuks - e que
já não era mais possível evitar. Há uma
espécie de luto da esteticidade imediata e da ideia de
suavidade visual. Imagens como a da mão com a lâmina, a
cama branca desfeita, as cores frias com que muitos dos retratos
são enquadrados, o filtro produzido pelo vidro sob a chuva, os
olhares frequentemente desviados (alheados) das personagens, a
fotografia que é um auto-retrato com binóculos, tudo
isso é a matéria com que se produz aqui uma
espécie de distanciamento amadurecido.
A
conotação do trabalho de Blaufuks com o género
de "fotografia de viagem", num sentido "tout court", parece agora
também redutora ou mesmo despropositada, como já se
anunciava há vários anos, sobretudo desde "O livro do
desassossego" ou "Ein Tag in Mostar" (1996) (sendo que este
último resultou expressamente de uma viagem). A viagem
está lá, no colectar da experiência visual e
emocional, não como causa mas sim como consequência.
Consequência de uma certa forma de estar no mundo, marcada pelo
sentimento de exílio familiar e identitariamente estruturante
(judeu e neto de refugiados), mas consequência também de
uma sensibilidade aberta aos jogos de alteridade, à troca de
símbolos, ao coleccionar de intensidades vividas. Aqui e agora
revela-se (retrospectivamente, se isso é legítimo
fazer-se) o sentido inicial que marcava o seu trabalho em
relação a essa ideia mítica para a fotografia
que é a viagem. O lugar por esta ocupado, referencialmente
importante, não é mais do que como metáfora de
uma compulsão para a errância simbólica e
emocional, de uma viagem para lado nenhum. Não se trata de
coleccionar paisagens, rostos diferentes, palavras de outras
línguas, ou de pôr em cena toda essa
circulação de alteridades que marca o século XX.
Apenas de configurar uma certa forma de experiência
contemporânea que faz da inquietação do tempo, do
absurdo e do sentido da experiência, a matéria principal
da sua reflexão.
Com esta
exposição, o trabalho de Daniel Blaufuks ganha um novo
ajuste consigo mesmo, libertando-se do potencial esteticista em que
poderia desembocar. Liberta-se também dessa
relação episódica, benevolamente inconsequente,
com a literatura, assumindo um discurso específico, o da
imagem, que é agora trabalhada, a partir de dentro, como
linguagem totalitária. O que significa isso? Que se a imagem
invoca a narrativa, ao abrir para o antes e o depois (e sugerir,
insidiosamente, a construção de um cinema mental), por
outro lado ela impede-a, remetendo para o vazio, para o nada, para a
petrificação produzida pelo enquadramento
estático.