Uma escrita de instântaneos

 

A Scientific and Literary Friendship, An Unfinished Story, Banal Story, A Sense of Reality, Dream of a Strange Land, A Distant Episode. Estes são alguns dos títulos dos dípticos incluídos nestas Collected Short Stories, e evoco-os por serem expressões adequadas à natureza e extensividade do trabalho que Daniel Blaufuks tem desenvolvido desde meados da década de 90, em particular após os seus London Diaries. Um imaginário peculiar que prescinde de qualquer estatuto de prova para compor um campo de narrativas em que o vivido se cruza, intra-remissivamente, com aspectos privados (percepções, memórias, fantasias, obsessões) e públicos (encontros quotidianos, narrativas literárias e cinematográficas, factos históricos).

Depois de um percurso inicial marcado pela sua ligação ao semanário O Independente, Daniel Blaufuks rapidamente preteriu os modelos da reportagem fotográfica mais convencional a favor de uma experiência deambulatória e hiper-subjectivada na qual a fotografia é intencionalizada como meio de, simultaneamente, captar e reconverter a realidade captada. Desde My Tangier (1991), e continuando por A terra é azul como uma laranja (1992), London Diaries (1995), Uma viagem a São Petersburgo (1998) e andorra (2000), só para citar alguns exemplos, que Daniel Blaufuks protagoniza uma fotografia extremamente personalizada, tanto no que respeita aos momentos e condições da captação fotográfica como às possibilidades e experiências decorrentes do processamento e impressão fotográfica, configurando uma visualidade que, entre outros traços, se define na tensão entre o registo livre (e aparentemente sem método) e uma forte expressividade estética - que aqui não deve ser entendida como mera investigação formalista, mas sim como meio susceptível de resgatar (fotogenicamente) do quotidiano vivencial a memória de uma significância emocional e poética despertada pelas circunstâncias dos lugares, na interacção com as pessoas (do seu círculo, ocasionais, anónimas) e com os objectos e situações que encontra.

Circulando por vários géneros e categorias fotográficas, Blaufuks combina um exercício de recolecção com uma linguagem fotográfica de evidentes ressonâncias simbólicas e ficcionais, onde sobressaem as imagens densas de tonalidades escuras e cores saturadas. Num primeiro momento privilegiou a fotografia a preto e branco de pequeno formato, contudo, a partir de 1994, assiste-se a uma evidente expansão nos seus processos de trabalho (polaroids, livros que misturam imagem e texto, vídeo, película, processos digitais, etc.). De forma clara, Blaufuks tem inflectido para uma cultura contemporânea da fotografia em que esta já não é entendida como uma disciplina enformada por uma específica processualidade técnica, mas como um vasto campo de negociação de múltiplas modalidades e dispositivos de imagem.

No início deste livro, o autor esclarece-nos que estas histórias curtas foram escritas em oito países, entre 2000 e 2002. Estes dados são bastante significativos porque assinalam dois tipos de experiências fundamentais para Daniel Blaufuks. Em primeiro lugar a viagem, ou se quiserem a fotografia de viagem, que, desde logo, nos chama também a atenção para um tema transversal a grande parte da sua obra: a condição de exílio. A tendência para fotografar em itinerância ou em períodos de ausência de Portugal, a exploração de temas sugeridos pela sua história familiar (a fuga dos seu avós da Alemanha nazi para Portugal) misturam-se com experiências de exílio sugeridas ou configuradas pela admiração por fotógrafos como Robert Frank ou pela memória literária de autores como Paul Bowles, Joseph Conrad e Graham Greene.

Em segundo lugar, a sua escrita (fotográfica) é um sinal claro da sua tendência para uma espécie de snasphot prose, um discurso assente em fragmentos visuais que indiciam histórias privadas a caminho de se tornarem livremente públicas &endash; num certo sentido, este tipo de fotografia assinala umas das faces da íntima relação que a fotografia estabeleceu com a literatura no contexto da cultura moderna, sendo que a outra se refere ao desenvolvimento, por parte de certos escritores, de uma lógica ficcional que incorpora a amplitude e especificidade da imaginação fotográfica.

As motivações literárias de Blaufuks também são comprovadas pelo seu interesse em livros/catálogos. Nos últimos 14 anos, o autor fez 13. Poder-se-á dizer que a sua relação com a fotografia está longe de ser satisfeita pelas lógicas tradicionais de exposição. Mas é muito mais do que isso: o livro representa um investimento nas potencialidades da imagem, nomeadamente a expectativa de promover uma relação com as imagens em permanente renovação.

Nestas Collected Short Stories são apresentadas Thirthy-One Stories sobre a forma de dípticos. Observe-se Berlin, Blue Film, Travelling Light em que se registam presenças humanas e cenários urbanos (uma das combinações mais frequentes): são pares que referenciam acontecimentos e sentimentos mais ou menos fugazes, dos quais apenas nos é permitido o acesso a uma suspensão isolada, numa representação que nega qualquer tipo de fluência mais credível. Nesta falta de discernimento, estas fotografias impelem-nos para um certo jogo ficcional (por mais curto que seja), sendo a única possibilidade de resolvermos uma imensa distância: uma distância irresolúvel, que vincula a fotografia como uma certa experiência de perda; um vazio que se abre, ao longo do tempo, por um passado estranhamente fixo e conservado, e que nestes dípticos tende a ser duplamente acentuado pela distância (semiótica) que medeia as duas fotografias e estas e o título. Um dos efeitos desta fotogenia é o de nos conduzir para a "continuação" (im)provável do que se mostra, levando-nos muitas vezes a sermos colhidos pela ideia de nos termos convertido nesses personagens desconhecidos, de nos vermos subitamente cercados por uma história fotográfica ao qual não pertencemos e onde intervimos de forma acidental, de nos vermos sucumbir ao labirinto de outros relatos com outros nomes, capítulos e incógnitas.

Quando confrontados com muitas destas Thirthy-One Stories é fácil compreendermos que a força irresistível da imagem fotográfica radica também no facto do seu acto não necessitar de motivos já legitimados e valorizados, dado que toda a realidade pode ser convertida em matéria relevante. Esta ênfase não é, contudo, exclusiva ao universo da fotografia, sendo um sintoma do tipo de ficcionalidade que se consolidou com a cultura moderna: na literatura, na fotografia e na pintura, e mais tarde com o cinema, os aspectos da vida quotidiana adquirem, de uma forma espantosa, uma importância sem precedentes, constituindo-se uma das bases a partir do qual o sujeito elabora as suas ficções.

Uma das mais estimulantes qualidades da fotografia é a sua capacidade em reunir, casualmente, elementos díspares que despoletam experiências e sentidos imprevistos. Isto é muito evidente nestas fotografias de Blaufuks, na medida em que estes dípticos (frequentemente dissonantes) intervêm num espaço e num tempo relativamente abstractos, ainda para mais quando cruzados com títulos enigmáticos que, num certo sentido, têm uma relevante carga visual (levando-nos a pensar se estamos perante dípticos ou trípicos). Estamos próximos da noção de palimsesto, em que, no lugar de uma interpretação explícita, o fotógrafo prefere remeter-nos para um quadro de infinitas possibilidades, sendo que a primeira imagem (feita pelo fotógrafo) não é mais do que um convite (a nós e a ele próprio) para a configuração de outras imagens, histórias e emoções. Ou seja, estas fotografias não têm propriamente um tempo, obrigando-nos a pensar não só no tempo em que se exerceu a obturação fotográfica, mas também no tempo que (imprevisivelmente) adere às imagens, para transformá-las e redobrá-las - é certo que isto também ocorre com outras formas de arte, no entanto, o seu efeito é mais intenso no caso de uma criação cujo material está tão intimamente vinculado com a experiência do tempo.

Atrevo-me a reconhecer um lado proustiano em muitos dos trabalhos de Blaufuks pela forma como exprimem um imenso desejo de experiência, pela forma como estimulam a vertente involuntária da memória, num esforço de reconstituição que transcende e ultrapassa o concretamente vivido. Em verdade, apesar da sua pretensão em sancionar uma certa dimensão autobiográfica, julgo que as fotografias de Daniel Blaufuks, mesmo as de trabalhos como London Diaries ou Viagem a São Petersburgo, não devem ser contempladas numa lógica diarística porque não relatam, não esclarecem, não ordenam.

Apesar da influência (e prática) do cinema, a sugestão ficcional na fotografia de Blaufuks também não é propriamente cinematográfica (aqui entendida como trama resultante de uma soma de elementos que adquirem sentido na sua sequencialidade, e que tem mais haver com a memória voluntária, porque constrói e articula). Estas fotografias, na sua precariedade, potenciam uma narratividade muda: podem, por vezes, suscitar um sentido, nunca exclusivo e muitas vezes incompreensível, mas, na maioria das vezes, o que afirmam é a sua condenação ao silêncio. Com Blaufuks, a câmara fotográfica não cria uma dada situação, gesto ou objecto, senão mediante um tipo de enquadramento que os obriga a existir de novo e, deste modo, a dizer, sem dúvida, algo completamente diferente do que diziam antes de irromper o aparato captante.

Isto implica reconhecer que a fotografia não nos dá a realidade senão a "aparência da realidade", promovendo um imaginar que se consubstancia nessa teia de múltiplos filamentos que se entrecruzam. Desvinculado das habituais expectativas realistas na representação fotográfica, Blaufuks sugere que o autor não só é incapaz de descrever, como também o seu principal objectivo é o de avivar. Avivar a urgência de um pensamento-emoção sobre aquilo que já existe em nós &endash; um labirinto de imagens, memórias e narrativas.