sábado, 10 de Junho de 2000

Polaróides de S. Petersburgo

 

À chegada a S. Petersburgo, o fotógrafo Daniel Blaufuks não esperava nada. A realidade deu-lhe ainda menos: uma "cidade infinita" de "prédios vazios", com Leninegrado ainda á flor da pele. "O melhor da viagem não é andar de um lado para o outro. É não ter nada para ver", disse a Pedro Rosa Mendes. O nada é, por isso, um sítio para percorrer e captar em polaroids, talvez porque "as coisas más nas viagens acabam por ser as melhores memórias: é aquilo que temos para contar".

Nem todas as viagens inesquecíveis começam pelas melhores impressões. Sabem-no os viajantes e os fotógrafos - sobretudo os que tiram polaróides. Nesse mundo instantâneo, as desilusões podem ter um final feliz. Na sua viagem a São Petersburgo, a câmara de Daniel Blaufuks aterrou numa "cidade infinita" de "prédios vazios" que, três semanas depois, era já outra - transformara-se num sítio onde é obrigatório voltar. Mas antes houve que mudar para um velho hotel de estação ferroviária. Regras número um e número dois: sem estilo não vale a pena sair de casa.

Daniel Blaufuks fotografa sempre e viaja muito. "Uma Viagem a São Petersburgo" aconteceu a convite dos Encontros de Fotografia de Coimbra, em 1998 (estadia em Agosto, exposição e livro com esse nome em Novembro do mesmo ano). Blaufuks não esperava nada e à chegada teve ainda menos. São Petersburgo foi, primeiro, o "aeroporto triste", os "blocos de cimento", "o corredor interminável do hotel com tantos quartos e tão poucas pessoas". Para resumir: São Petersburgo tinha Leninegrado à flor da pele, com os adereços soviéticos, "os monumentos de uma revolução passada", o rádio colado à parede do quarto, "parece mais para se ser ouvido do que para ouvir", como o fotógrafo escreveu no catálogo da exposição.

Era, felizmente, um engano mau. Daniel Blaufuks pôde conhecer São Petersburgo quando "a bandeira soviética servia para proteger a mala do táxi, agora que já não tem outra utilidade". O que há para descobrir - "a arquitectura, a escala, a História", recorda hoje o fotógrafo - é muito anterior a Leninegrado (o nome que puseram a São Petersburgo em 1924). A sedução da cidade de Pedro, o Grande - o czar que pagava por monstros humanos, conservados em vinagre ou vodka na "câmara de arte" - continua a flutuar à tona dos canais. Como se o betão socialista nunca tivesse existido.Em 1998 Blaufuks teve, além disso, a bênção de um verão com poucos turistas. É fora das multidões que se disfruta melhor a esmagadora riqueza do Ermitage, um dos maiores museus do mundo e o único em que dizem que o disfrute é total. "Tem tudo!" aquilo que se adivinha com apenas um dia de visita: quadros sobre quadros, estátuas acotovelando estátuas - e as salas (de pouca luz), os tectos, os pavimentos, as janelas que dão sempre de maneira diferente para o canal.Não é, no entanto, isso que preenche as viagens de Daniel Blaufuks. "O melhor da viagem não é andar de um lado para o outro. É não ter nada para ver". O nada é para percorrer. É dessa ausência que Daniel Blaufuks gosta tanto na América do Norte: uma paisagem anónima, sem nenhuma inscrição específica ou, o que tem o mesmo efeito, com um excesso de reconhecimento, um índice remissivo para o que já está visto antes de se ver pela primeira vez. As fotografias de Blaufuks mostram como há "América" em tudo. Ou ao contrário? A"América" vem de todo o lado, também da Rússia. Está no diário: "Assemelha-se São Petersburgo a um cruzamento entre a velha Europa dos palácios e dos canais e a América dos blocos de apartamentos, dos grandes automóveis, das largas avenidas e dos produtos em série".

Como nos EUA, a viagem russa de Blaufuks é feita com os olhos do cinema. São Petersburgo é, por exemplo, o "Outubro" de Eisenstein. Ou algo ainda mais pesado, uma viagem de desolação, talvez no imenso lago Ladoga à procura do arquipélago de Valaam e da ilha de Khizi: "Fizemos um cruzeiro pelas ilhas do norte. Insuportável. Como um Tarkovski durante três dias... Queria ver as igrejas com arquitectura de madeira, com aquelas cebolas e tudo. A cada ilha que chegávamos aparecia-nos de repente uma senhora a tocar violino". E o barco, terrível, com empregadas chamadas Olga ou Lena de saias invisíveis e blusas transparentes. "Havia um megafone que nos dizia o plano do dia, em russo. Pequeno-almoço às 8h15." A bordo havia um bar que tocava apenas duas cassetes: um Sting ("I hope the Russians love their children too") "e a outra era uma coisa intragável russa". É supérfluo perguntar o nome do bar.(Bar Tolstoi.)"E não parava de chover...". Daniel Blaufuks já aprendeu também que "as coisas más nas viagens acabam por ser as melhores memórias: é aquilo que temos para contar". O cruzeiro no norte acabou com uma fuga de comboio, desesperada, de regresso a São Petersburgo via Petrozavodsk (mandavam os exilados para lá). "Não dissemos nada a ninguém no barco porque só falavam russo. Ainda hoje devem pensar que caímos à água". Depois da última polaróide, o fotógrafo está conquistado pela cidade e a viagem fecha-se, como todas, com uma promessa sincera e fútil: "Voltaremos a encontrar-nos em Petersburgo".