Quando
passeio entre as campas do cemitério judaico em
Lisboa, reconheço os nomes gravados na pedra, como se
estivesse num cemitério de aldeia.
Uns
pertenciam ao círculo mais próximo dos meus
avós, ao grupo da canasta, outros iam, como
nós, à sinagoga em dias de festa ou ao centro
israelita aos sábados à tarde. Alguns nomes
são anteriores a estes, avós, tios ou pais,
que conseguiram também escapar. Das 50 mil a duzentas
mil pessoas que passaram por Lisboa, apenas cinquenta aqui
ficaram.
Agora
temos três campas neste cemitério. Como muitas
outras, pertencem à história desta
guerra.
Os meus
avós sairam de Hamburgo e chegaram ao porto de Lisboa
no dia 8 de Abril de 1936, para não mais partirem.
Segundo as cartas do meu avô, o mar esteve calmo e a
viagem foi aborrecida. Talvez estivesse apenas ansioso pelo
início da sua segunda existência. A minha
avó enjoou, não do mar talvez, como pensou o
meu avô na altura: a minha mãe nasceria, meses
mais tarde, em Outubro, neste porto de abrigo.
Na
Alemanha decidimos emigrar o mais rápidamente
possível. As condições pioraram
colossalmente, o que passou despercebido no resto da Europa,
não só para nós judeus, mas em geral
também.
Portugal era o único país
europeu possível e existia o perigo de também
fechar as fronteiras.
Assim
casámos no dia 16 de Março, apenas no registo,
porque tudo o mais teria custado muito dinheiro que
precisávamos para outros fins.
No dia
31.3. à tarde deixámos Magdeburgo acompanhados
na despedida por familiares e pelos nossos
amigos.
Embarcámos, depois de tudo correr
bem, no dia 3.4.36 no Monte Olivia, poderiamos ter trazido
milhares connosco.
A
viagem foi aborrecida, o tempo estava fresco e o mar
tranquilo. Mesmo assim, a minha mulher enjoou, aproveitando
pouco da travessia.
A 8 de
Abril, pouco antes da Páscoa, chegámos com um
tempo maravilhoso. As palmeiras resplandeciam ao nosso
encontro.
SOB
CÉUS ESTRANHOS
Milhares
de refugiados passaram por Lisboa mas poucos aqui ficaram.
Para estes, por diferentes razões, o porto de
trânsito tornou-se no ponto de destino.
Aqui
morreram e aqui viveram as suas vidas, que teriam sido
completamente diferentes, se tivessem, como tantos outros,
seguido o caminho das Américas. Do norte ou do sul,
consoante o seu plano de fuga de uma Europa em
chamas.
Dos que
seguiram caminho pouco ou nada ficou. Nos museus portugueses
não existem, por exemplo, obras de Marc Chagall. Nas
memórias dos escritores Heinrich Mann, Hans Sahl e
Hertha Pauli, Lisboa não merece mais do que um breve
capítulo ou uma nota de rodapé.
Erich
Maria Remarque não passou por cá durante a
guerra. No seu famoso romance "Uma noite em Lisboa", escrito
apenas em 1962, a cidade é pouco mais do que
título e pano de fundo para outra história.
É na Neutralia de Arthur Koestler, na avenida das
palmeiras e nos cafés dos refugiados, que mais a
reconhecemos. No entanto, em "Arrival and Departure",
editado ainda durante a guerra, Lisboa nunca é, de
facto, nomeada:
As ruas
tinham-se transformado em largas alamedas, flanqueadas de
ambos os lados por palmeiras ainda mais imponentes e por
blocos de casas brancos, ortogonais, que reflectiam a luz
forte e ofuscante. As lojas ostentavam uma elegância
de província e pareciam concentrar-se principalmente
em camisas de seda para homem e "panamás". Estranhos
carros eléctricos, com buzinas como as dos
automóveis, deslizavam sobre carris que o sol quase
derretia. Ele chegou a uma grande praça aberta com
uma fonte no meio e cafés a toda a volta; o passeio
estava repleto de mesas e cadeiras de verga e protegido do
sol por toldos claros. A maior parte das mesas era ocupada
por homens, habitantes de um país neutro, de cabelos
escuros, gravatas vistosas e ombros enchumaçados.
Beberricavam café em chávenas
minúsculas, fumavam cigarros ou então, fixando
o horizonte em silêncio, deixavam que o sol os
iluminasse, como lagartixas sobre uma pedra em dia de festa.
Algumas das mesas estavam ocupadas por grupos mistos,
mulheres e homens, sem dúvida estrangeiros, exilados
de passagem, vindos de países ocupados pelo inimigo.
Falavam em voz baixa, com pequenos tiques nervosos no rosto,
e juntavam as cabeças por cima das mesas como um
bando de gralhas negras em dia de trovoada.
Arthur
Koestler
Em
Magdeburgo, os meus avós tinham decidido partir.
Passavam três anos desde a tomada de posse de Hitler,
que, ao meu avô, na altura com vinte anos, apenas
merecera uma curta linha nos seus diários. A
situação para os judeus piorava, mas
não sei exactamente o que os terá levado a
tomar esta decisão, muito antes de tantos outros.
Terão sido as recentes leis racistas ou a
acusação ao meu avô de não ter
feito a saudação nazi num sítio onde
aparentemente nunca tinha estado. O facto é que
já em Setembro de 1935, o meu avô tinha escrito
cartas para Espanha, pedindo informações sobre
uma possível imigração.
Cresci num
quinto andar do mesmo prédio em Lisboa, onde os meus
avós habitavam dois pisos abaixo. As casas eram
idênticas e eu subia e descia aquelas escadas
inúmeras vezes durante o dia. Era lá em baixo
que se tomavam as refeições e se passava o
serão, tanto mais que o meu avô tinha adquirido
uma televisão. Não me lembro de os meus
avós alguma vez teram comprado móveis para a
casa. Tudo parecia estar lá desde sempre e assim
ficou até muitos anos após a morte da minha
avó, tal como ainda se mantém na casa de
Verão em Birre. Das peças vindas da Alemanha
poucas sobreviveram às mudanças de casa e de
classe social. Uma ou outra velha caixa de chapéus
coberta de auto-colantes de antigos hoteis. Baús, que
há muito tempo atrás, foram parte de um
automóvel e, posteriormente, serviram para
transportar os haveres da família no barco para
Lisboa.
As velhas
toalhas da casa dos meus bisavós em Magdeburgo e
outros pequenos objectos desapareceram, quando a casa foi
repetidamente assaltada nos anos revolucionários de
1974 e 1975.
O meu
avô encontrou na minha avó uma companheira para
a sua fuga. No dia da despedida, os amigos ofereceram-lhes
um livro, a "Saga dos Judeus", com as assinaturas dos que
ficavam. Apesar da firme decisão de se manterem em
contacto, não creio que alguma vez tivessem voltado a
rever qualquer desses doze nomes.
Assim
estamos quase todos fora, e só Deus sabe, onde ainda
iremos parar. Um segue o outro. A Alemanha está cada
vez pior. A ironia da história é que para os
judeus na Alemanha resta só uma única
salvação: guerra.
Algumas
semanas após a chegada a Lisboa, os meus avós
conseguiram encontrar uma primeira fonte de rendimento. A
minha avó começou a trabalhar em casa como
costureira e modista, mas, para o meu avô, as coisas
foram mais difíceis. Sem o conhecimento da
língua, os primeiros tempos devem ter sido bastante
penosos. Entre outras formas de ganhar a vida, imaginou o
fabrico caseiro de gelados e experimentou um serviço
de quartos de aluguer.
Segundo as
leis portuguesas, os estrangeiros não podiam obter
trabalho remunerado. No entanto, existem algumas cartas de
recomendação de empresas, nas quais o meu
avô deverá ter tido algum emprego
temporário. Sei que andou a vender de porta em porta,
embora não saiba bem o quê e durante quanto
tempo.
Até
1940, o número de refugiados em Portugal não
rondava mais do que umas centenas. Com a queda de Paris e a
consequente acção humanitária do consul
Aristides Sousa Mendes, este número sobe
abruptamente. Apesar de todas as restrições
das autoridades portuguesas, existem estimativas de 30 000 a
50 000, ou mesmo 200 000 refugiados em trânsito pela
capital portuguesa. O tempo de espera por uma passagem de
barco para Nova Iorque era agora de um ano.
Muitos dos
perseguidos encontraram a sua salvação
através de Lisboa. Mas, tal como em outros
países, muito mais poderia ter sido feito e muitos
mais poderiam ter sido salvos através de uma
política de imigração
flexível.
Para
chegar a Lisboa legalmente, um refugiado necessitava de um
visto de saída de França, de um visto de
trânsito espanhol, de um visto de entrada noutro
país e vistos de trânsito nos eventuais portos
de ligação, de uma confirmação
da passagem de barco a partir de Lisboa para esse
país, fundos no estrangeiro para pagamento da
travessia e, finalmente, do visto português.
Muitos
chegavam sem um único documento.
A
pensão encheu-se. Cada vez mais amigos vinham agora
para Lisboa. Tinham atravessado os Pirinéus a
pé, Carmen, terceiro acto, dizia o compositor de
operetas. Muitas vezes a aventura não resultava, e
eles tentavam uma segunda ou terceira vez, ou desistiam
definitivamente. Seja como for, a pensão estava a
abarrotar e o senhor Carvalho, o proprietário, andava
para lá e para cá no corredor, entre a cozinha
e o pequeno escritório, as mãos cruzadas
atrás das costas, talvez fazendo contas em
silêncio; olhava para os estrangeiros, sabia que entre
as muitas línguas dominavam o alemão e o
polaco, que nunca imaginara ter de voltar a abrir o andar de
cima e que o curso da história do mundo era uma
verdadeira surpresa.
A sala
de jantar nunca tinha estado tão cheia. Os
estrangeiros impacientavam-se quando tinham de esperar pela
comida, mas o senhor Carvalho limitava-se a encolher os
ombros. Se o serviço sempre tinha sido feito com dois
criados, por que razão é que agora havia de
ser diferente? E também nem lhe passava pela
cabeça mudar o menu. Ele próprio se deliciava
com o molho de cebolada e o azeite, o peixe e também
o assado eram cozinhados como já a mãe em
Coimbra e até a avó em Pombal os faziam, e
assim teriam de os comer também os estrangeiros, que
ninguém os tinha mandado vir.
Hermann
Grab
Lisboa
habituou-se a ver os estrangeiros passarem dias em
cafés, que os portugueses não consideravam
apropriados para senhoras. As refugiadas fumavam, pintavam
os lábios e usavam penteados modernos, que
atraíam a atenção dos homens e eram
copiados pelas mulheres. Os fugitivos pareciam levar uma
vida inútil, criando assim, entre os portugueses,
alguma desconfiança ou mesmo inveja. Não
podiam entender quão miseráveis os refugiados
se sentiam, cansados desta letargia, desta inércia
imposta e sempre preocupados com os que tinham ficado para
trás.
Uma
memória de uma memória de uma
memória:
Lembro-me
de a minha mãe me contar de como a sua mãe lhe
contou uma recordação dos tempos de guerra.
Tinham ido à Baixa e passaram diante da montra
recheada de doçes da Casa Favorita. A minha
mãe estendeu o braço contra o vidro, tentando
agarrar aqueles bombons inalcançáveis e a
minha avó chorou por não ter dinheiro para os
comprar.
As
autoridades portuguesas não apoiavam os refugiados.
Estes recebiam fundos das organizações
judaicas americanas, o Hicem e o Jewish Joint, distribuidos
pelo comité de assistência aos refugiados da
comunidade israelita de Lisboa. O dinheiro vinha dos Estados
Unidos e era aqui gasto em pensões e quartos de
aluguer, com a polícia, comida, roupa, medicamentos
e, por fim, nas passagens dos navios para álem-mar.
As
organizações judaicas fretavam barcos
inteiros, garantindo assim não só uma
lotação adequada, mas também uma
constante fonte de rendimentos para a Companhia Nacional de
Navegação. A sala de espera desta gente toda
tornou-se num negócio rentável para o
país.
No porto
de Lisboa estavam atracados navios que já não
levantavam ferro, ou raramente o faziam. Nos cafés
viam-se refugiados de todos os países à espera
de um visto e procurando ser ouvidos nas mais desvairadas
línguas. Era aí que encontravam os traficantes
do mercado negro, vendendo passagens em pequenos barcos a
vapor portugueses que levavam quinze dias a chegar à
América.
Sentíamo-nos em liberdade... Havia
que comer, podíamos ir ao barbeiro e até
à manucure. Abraços em tabernas cheias de
fumo, junto ao porto, a amigos que também tinham
conseguido escapar. Brindava-se à América e
todos combinavam ir juntos, assim que chegassem, ver o novo
filme de Chaplin, " O ditador", que acabava de estrear em
Nova Iorque. Mas a sensação de
segurança era enganadora. Enquanto não
tivéssemos um visto americano estávamos na
Europa, e Hitler já tinha ocupado quase todo o
continente. Por que razão havia de poupar Portugal?
Não havia tempo a perder. Era preciso garantir
passagem num navio, antes que fosse tarde de mais. Era
preciso ir ao Hicem. Os judeus da América
preocupavam-se connosco. O Hicem pagava a viagem, o Hicem
pagava o hotel e o cabeleireiro, o Hicem pagava o bolo que
engolíamos, a fruta, os chocolates, tudo o que fosse
comestível, até ao vómito. O Hicem
pagava o médico e a conta da farmácia, as
pílulas contra a angústia e as
insónias, e quando finalmente chegou o visto
americano, com um atraso de mais de três semanas,
pagou também o bilhete que eu tinha conseguido
negociar no café Chave d'Ouro poucas horas antes de o
pequeno vapor português zarpar.
Hans
Sahl
Uma vez no
Rossio, recordo do meu avô me apontar o
edíficio do café Chave d'Ouro, já
então substituído por um banco. Aí se
encontravam muitos dos refugiados para conversar, trocar
informações, comprar passagens, mas, acima de
tudo, esperar. Segundo disseram ao meu avô, logo na
sua primeira visita, a maioria dos empregados do café
trabalhava para a polícia de estado. Embora falassem
sempre em alemão, os exilados, tomavam a
precaução de substituir Portugal e portugueses
por Grécia e gregos, nas suas conversas, o que
chamava menos a atenção quando outros as
escutavam.
Mais
abaixo, em frente ao Café Nicola e ao Hotel
Metrópole, sucedeu um dos episódios mais
assustadores para os refugiados em Lisboa durante a guerra.
Em Outubro de 1941, o editor e jornalista Berthold Jacob,
autor de vários artigos anti-nazis, foi
forçado a entrar num automóvel, levado para
Espanha e daí para Berlim, onde foi torturado
até à morte. Este rapto, em plena luz do dia
na principal praça da cidade, só terá
sido possível com a conivência de simpatizantes
dos alemães dentro da polícia portuguesa. E,
provavelmente, com o consentimento do próprio
Salazar, que, por esta altura, mantinha um retrato
emoldurado de Mussolini na sua secretária.
O caso foi
noticiado na imprensa de Londres e seguido, com ansiedade,
pelos exilados em Lisboa. No entanto, quando logo depois do
fim da guerra, o irmão de Jacob inquiriu junto do
Ministério dos Negócios Estrangeiros sobre o
desaparecimento, a polícia alegou total
desconhecimento sobre o assunto e garantiu que o jornalista
nem sequer tinha estado no país.
O governo
assustava-se com uma possível invasão de
refugiados.
Representavam uma ameaça social e
política, não só como judeus, mas como
eventuais comunistas, anarquistas ou mesmo intelectuais. A
alegação de que tiravam lucros aos
portugueses, a proíbição de venderem
artigos nas ruas principais da capital e o afastamento dos
recém-chegados para a província, eram
consequências óbvias destes receios.
Lisboa
era uma beleza, se nos ficássemos pela Avenida e
prescindíssemos de entrar pelas ruas escuras à
esquerda e à direita, onde, à porta de casas
miseráveis, homens e mulheres preparavam as parcas
refeições em fogareiros: slums, como só
mais tarde iria ver em Harlem/Nova Iorque. Depois do passeio
da manhã - semanas a fio sem resultados - até
ao majestoso edifício dos Correios que ficava no fim
da Avenida, sentávamo-nos num dos cafés, onde,
durante horas diante de uma "bica", íamos observando,
meio divertidos, os informadores das potências em
guerra a fazerem sinais uns aos outros. Na altura, Portugal
albergava provavelmente a maior parte dos espiões ou
dos agentes "oficiosos" alemães nazis, ingleses e
americanos, todos com alguma missão a cumprir. Ao
contrário do que acontecia em Paris, Praga ou
Estocolmo, não havia aqui nenhuma
ligação entre os emigrantes.
Encontrávamo-nos às vezes por acaso, mas de
resto estávamos entregues a nós
próprios.
Karl O.
Paetel
O meu
tio-avô, Hans Leinung, chegou aqui em 1938 e era o
delegado do Comité Israelita na Ericeira, um dos
locaus em que os refugiados eram obrigados a permanecer em
regime de residência fixa.
A sua casa
funcionava não só como escritório, mas
também como escola e sinagoga improvisada. Encontrei
um pequeno album, com as suas fotografias da aldeia e das
actividades que organizava para os refugiados, a quem
não era permitido trabalhar. Na Ericeira
encontravam-se então 145 estrangeiros e a minha
mãe passava lá as férias de
Verão entre a praia e o jogo da bola, o Café
Salvador e a polícia, onde levava os passaportes para
serem visados, a pedido do seu tio. Todos os vistos
concedidos eram para turismo e válidos por
períodos de 15 ou 30 dias, teoricamente não
extensíveis. Assim, os refugiados estavam à
merçê das autoridades locais. Talvez o meu
tio-avô pensasse que em certos casos, seria para uma
criança mais fácil obter os resultados
desejados.
Lembro-me
que existia lá em casa um último boneco de
pano, um porquinho, sobrevivente da fabriqueta de brinquedos
MUNA que o meu avô iniciara, na garagem da casa da
Amadora, para onde se tinham mudado. Devido à guerra
as importações rareavam e criaram assim uma
linha caseira de bonecos de pano que contrastavam com os
tradicionais brinquedos portugueses. Todos os modelos eram
fotografados num estudiozito improvisado, recebiam um nome
de baptismo e eram referenciados num catálogo colado
à mão, para apresentação a
clientes, como a Kermesse de Paris na Baixa lisboeta.
Muna era o
diminutivo da minha mãe, Manuela, o primeiro nome
português na família. O negócio
prosperou ao ponto de empregar, como mostra uma fotografia
que encontrei, algumas costureiras, com o logotipo da firma
ao peito, desenhado pelo meu avô.
A minha
avó iniciara-se, entretanto, como "Fräulein" em
várias famílias portuguesas abastadas, tomando
conta das crianças e ensinando alemão. Por
essa altura foi das primeiras a trabalhar no jardim de
infância nas casinhas em miniatura, que ainda hoje
existem, no Jardim Zoológico de Lisboa.
Uma das
responsabilidades do meu tio-avô Hans era a
recepção de refugiados na
estação do Rossio em Lisboa, onde os
recém-chegados já não eram autorizados
a permanecer. Alguns dos combóios vinham selados
desde Berlim ou tinham sido retidos na fronteira durante
vários dias. Os membros do Comité Israelita
acolhiam os viajantes exaustos e repartiam nos pelos
vários destinos previstos fora da capital.
Numa
destas missões, Hans reparou numa bela rapariga.
Ursula tinha acabado de chegar ilegalmente a Portugal,
depois de ter atravesssado a pé os Pirinéus.
Levou-a para descansar a casa dos meus avós e, mais
tarde, para a Ericeira.
Uma
fotografia, que encontrei num arquivo em Nova Iorque,
mostra-os no porto, a assistirem à única
saída de um navio de Lisboa para a Palestina.
Centenas de refugiados encontravam-se a bordo e alguns
tinham passado a sua estadia em Portugal na Ericeira. Tinha
havido uma grande festa de despedida no dia anterior, como
sempre acontecia quando alguém conseguia deixar a
aldeia. Amigos despediam-se para sempre, mas uma partida era
também uma renovada esperança para os que
ficavam.
Lisboa,
o único porto livre e neutral da Europa,
transformou-se em ponto de encontro e sala de espera de
todos aqueles que fogem de Hitler. De facto, não
foram nem uma exposição universal, nem um
festival o que atraiu tantas pessoas para estas ruas.
São exilados, apátridas, aqueles que aqui se
concentram. O seu número oscila, mas nunca deixam de
ser milhares: sem bagagem, sem dinheiro, muitas vezes sem
papéis, é assim que os refugiados aqui chegam.
E que coisa podem fazer? Apenas uma: ficar cá
enquanto tiverem autorização para isso. Apenas
esperar. E por quê? Pelo navio salvador que os
levará daqui, para qualquer lugar, desde que seja
longe, o mais longe possível do inimigo que lhes ia
no encalce para onde quer que fossem. Ele tinha-os
perseguido por toda a Europa, e agora esperavam pelo navio
salvador.
Erika
Mann
Ursula
casou com Hans na sinagoga de Lisboa, na presença dos
meus avós e depois da guerra, seguiu com o marido
para o Canadá. Foi lá que, cinquenta anos mais
tarde, vi uma lágrima nos seus olhos brilhantes, ao
mencionar aqueles que nunca voltou a reencontrar.
Entre os
que ficaram, fizeram-se amizades para o resto da vida e
mesmo para além desta. Estão todos
próximos uns dos outros naquele
cemitério.
O grupo da
canasta da minha avó era composto exclusivamente por
senhoras refugiadas. Reuniam-se às
terças-feiras e, nos dias anteriores, a minha
avó fechava-se na cozinha, preparando os seus famosos
bolos, a maravilhosa tarte de maçã, com um
sabor que nunca voltei nem voltarei a encontrar. Eu
sentava-me algures e esperava o momento em que ela me
chamasse para rapar os restos de massa com o "salazar", nome
para o rapa-tudo, cujo duplo sentido só entendi muito
mais tarde.
A partir
das três da tarde a sala começava a encher-se
de senhoras e de fumo, à volta da mesa de jogo,
verde, como os maços de tabaco "Monserrate" da minha
avó. Falavam alemão, com uma certa
distância para com os portugueses e Portugal,
não por altivez, mas, suponho, por necessidade de uma
identidade. Aquela mesa de canasta era um país, cujos
habitantes se reuniam às terças-feiras.
Daquelas senhoras, algumas tinham casado com portugueses e o
que encontravam ali era um pouco do seu passado, uma mistura
judaico-alemã, acrescida da realidade portuguesa.
Seria certamente impossível encontrar esta
combinação em qualquer outro lugar no mundo.
Um pouco daquilo que os nazis lhes tinham negado podia ser
reencontrado naquela sala.
A minha
avó foi a primeira a morrer e, penso que o jogo
terá continuado sem ela, por mais alguns anos,
até que um dia já não restou mais
ninguém à volta da mesa.
O
cantinho da posta-restante em Lisboa, Portugal, a mais
remota região da Europa, tornou-se no ponto de
encontro trágico para muita gente neste ano funesto
de 1940, que pôs a nu a leviandade e a
inconsciência de uma vida aparentemente tranquila na
Europa. Povos inteiros foram escravizados e famílias
separadas. A Europa estava a pagar pelos seus pecados e
pelos seus erros. E nós, refugiados e filhos desta
Europa, nós estávamos aqui em Lisboa e
esperávamos pela bóia de
salvação que alguém nos lançaria
do outro lado do oceano.
Alfred
Döblin
Desde
há muito que o governo se vinha esquivando à
questão dos refugiados. Portugal recusou-se a
participar activamente nas sucessivas conferências de
Evian e os existentes projectos de colonização
de áreas do Ultramar, pelos apátridas judeus,
foram igualmente rejeitados.
O regime
preparava a sua própria celebração na
Exposição do Mundo Português e nem a
guerra nem os fugitivos iriam estragar esta festa.
A
polícia controlava todos os pedidos de visto e fazia
bom uso da "marca J", carimbada nos passaportes
alemães, como uma forma fácil de
distinção entre os judeus e os arianos.
As pastas
nos arquivos do Ministério dos Negócios
Estrangeiros em Lisboa estão repletas de
requerimentos recusados. Pergunto-me o que terá
acontecido a estas irmãs, a este professor, a esta
mulher e a este casal, cujas fotografias ainda aqui se
encontram, tantos anos depois, guardadas num país em
que não foram autorizados a entrar.
Na
altura tinha sido montada junto ao mar uma notável
exposição colonial; o combóioem
direcção à cidade passava por ela,
parava expressamente no local - mas nem isso me fez sair.
É o que faz a despedida: interiorizamo-la, ela
absorve-nos completamente. O que noutra ocasião nos
impressionaria, não nos desperta agora o menor
interesse. No rio estava atracado, com a altura de uma casa,
o bergantim original do descobridor Vasco da Gama. Apesar de
se tratar de uma imitação, a sua silhueta
fantástica irradiava brilhos de ouro. Por mim,
até podia estar ali o célebre navegante em
pessoa, acenando com o chapéu, que a viagem que me
esperava reduzia a sua a nada. E ele não tinha
regressado?
Heinrich Mann
Quando
regressámos do hospital, no dia da morte da minha
avó, impressionou-me a aparente calma do meu
avô. Ainda hoje me enerva o seu cuidado em estacionar
o grande Taunus branco num lugar permitido, como se isso
pudesse ter qualquer importância naquele momento.
Não sei se terá sido a sua típica
rigidez e o seu respeito perante a lei e a autoridade, ou se
uma fraca tentativa de continuar a vida como até
aí. Se assim foi, seria em vão, porque tudo o
que tinha sido, deixou de o ser nesse dia.
Nunca
soube exactamente como ou quando o meu avô terá
conhecido a minha avó. Talvez através de
amigos, em algum círculo de juventude judaica, num
café ou no cinema. Poderiamos dizer que foi uma
história banal num tempo nada banal. A minha
avó sentiu-se, decerto, atraída pelos planos
do meu avô em abandonar a Alemanha, uma mudança
no seu destino que, talvez, já lhe tivesse igualmente
passado pela cabeça.
Certo
é que a ele se entregou para o resto da sua vida.
Hoje tem a sua campa ao lado da dele. Não fica muito
distante das dos seus pais, Elsa e Julius Leinung, que para
cá a seguiram em 1939, sobrevivendo do aluguer de
quartos na sua casa igualmente arrendada.
O meu
bisavô Leinung faleceu no último dia de 1942 e
a minha bisavó seguiu-o no primeiro dia de 1945. Dias
depois uma neve rara cobriu a cidade, acontecimento
único numa Lisboa relativamente quente. Terá,
sem dúvida, trazido memórias de casa aos
refugiados, juntamente com os fervores nacionalistas da
mocidade portuguesa. Talvez não estivessem ainda
suficientemente longe.
Os
refugiados estavam sujeitos a uma extrema pressão
psicológica. Já tinham sofrido e perdido quase
tudo. O medo de serem deportados ou presos fazia parte da
sua vida diária em Lisboa. Havia casos de loucura e
suicídios neste compasso de espera.
Chegada
a Lisboa, quis ir imediatemente em busca do jovem amigo cuja
notícia nos encorajara a fazer a viagem. Já
não o encontrei. Tinha morrido. Depois de ter chegado
são e salvo, suicidara-se num ataque de mania da
perseguição. Chegámos tarde de mais
para lhe agradecer.
Entrei
no navio com febre. À meia-noite vimos as
últimas luzes da Europa afundarem-se no mar,
avermelhadas como sangue.
O navio
levava-nos para o novo mundo - para o velho ideal da
liberdade.
Hertha
Pauli
Tendo sido
dos primeiros a chegar a Portugal, muito antes do
êxodo provocado pela queda de Paris, os meus
avós decerto que tiveram oportunidade para seguir
caminho, tal como tantos outros. No entanto, quando os
vistos foram autorizados, o meu avô retardou o
processo até que, em algum momento, deverá ter
tomado a decisão final de aqui permanecer. Não
creio que se possa apontar um único motivo para esta
decisão, provavelmente causada um pouco também
pela sua habitual teimosia. Abandonar Portugal significava
renunciar a todos os esforços dos últimos
anos, recomeçar novamente noutro país e, desta
vez, num outro continente.
Esperemos que a Guerra acabe depressa.
Nós, que fomos os primeiros da família a sair
da terra do Hitler por nossa conta e risco, seremos dos
poucos que ficarâo para trás na Europa
sãos e salvos (pelo menos até
agora).
Será que alguma vez se arrependeu
desta resolução? Não sei. Mas sei que
sou um resultado directo desta decisão.
O meu
irmão e eu costumávamos brincar com uma
bandeira inglesa, que encontrámos um dia no
sótão da casa de Birre. Presa no topo de uma
cana da índia, voava ao vento e acompanhava batalhas
imaginárias, repousando, em tempos de paz, num canto
do jardim. E foi aí que ardeu nos anos setenta, cana
e tudo, num incêndio que chegou a ameaçar a
propriedade.
Esta
bandeira era a única que restava das que o meu
avô hasteara na casa da Amadora, no dia do fim da
guerra na Europa.
Chegou
finalmente o momento. Há dias e semanas que estamos
colados ao rádio para não perder a boa
notícia. Há muita alegria por toda a parte e
Lisboa está enfeitada de bandeiras. Ontem já
houve demonstrações de alegria em frente
à nossa casa. Fomos os primeiros a içár
as bandeiras, ouviam-se felicitações e gritos
como "Vivam os Judeus". Hoje tirei algumas fotografias da
nossa casa embandeirada.
Nunca
consegui encontrar estas fotografias, tiradas pelo meu
avô nesse dia de todas as esperanças. Lisboa
festejou com bandeiras e paus, que representavam a bandeira
soviética proibida. Havia alguma esperança no
ar de que o regime em Portugal também não
resistisse aos ventos de mudança.
Dias
antes, Salazar enviara um raro telegrama de
condolências à Alemanha pela morte de Hitler e
decretara um luto oficial de dois dias em Portugal. Decerto
que, por esta altura, já tinha lido o extenso
relatório sobre os campos de Auschwitz e Birkenau,
enviado em Agosto de 1944 para Lisboa pelo consul
português em Bucareste, Carlos Branquinho. O documento
descrevia de forma detalhada o funcionamento dos campos de
extermínio e era acompanhado de números
precisos de vítimas, esquemas e
localização exacta dos vários
edíficios.
Imagina
que naquele país há um ditador que é
tão bondoso, um velho professor universitário,
um homem tão bom que toda a gente o louva. Que nome
se poderia dar a um sistema destes? Uma ditadura
democrática? Uma ditadura com manteiga em vez de
canhões? É verdade, ali há manteiga, e
nas pensões mais modestas menus que nunca mais
acabam, luzes e buliço alegre pela noite
dentro!
Balder
Olden
No fim da
guerra, menos de mil refugiados restavam em Lisboa,
reflectindo o êxito da política portuguesa de
país de trânsito e não de exílio.
Um corredor para outros destinos, uma sala de espera
incómoda.
Pouco
depois do dia da victória foi decretada uma lei que
obriga os alemães com bens a pedir uma
autorização para prosseguirem os seus
negócios. Esta destinava-se apenas aos "boches", mas
nós judeus alemães também
ficámos sujeitos... Pergunto-me então se
já temos paz ou se ainda estamos em guerra.
Entretanto, a polícia esforça-se em "honrar"
todos os judeus com a nacionalidade alemã na
renovação das suas autorizações
de residência. Aparentemente, as leis raciais foram
revogadas e agora está tudo como dantes. Isto
é o cúmulo, há gente que não
sabe o que significa a honra e a dignidade dos
outros.
Com o fim
da guerra as importações recomeçaram e
o meu avô viu-se incapaz de competir com os brinquedos
estrangeiros. Foi mais uma vez obrigado a procurar outras
formas de ganhar a vida: a venda de roupa usada do
exército americano para Angola, a
importação de tecidos para os Móveis
Olaio, de tubos de ferro belgas e , finalmente, de fita de
aço. No seu auge, o escritório chegou a
empregar um paquete e uma secretária, a menina ngela
que, lembro-me muito bem, me ofereceu um grilo por volta de
1974, o ano da revolução. A queda do regime,
vinte e nove anos após o fim da guerra, provocou um
declínio no volume de negócios e uma crescente
desconfiança no meu avô, forçando-o a
trabalhar sozinho o resto da sua vida.
Mas, nos
anos cinquenta, a vida corria melhor aos meus avós,
permitindo-lhes mudarem-se da vivenda da Amadora para o
apartamento da minha infância em Lisboa. Compraram o
primeiro automóvel e, com outros refugiados, viajaram
no Verão pelo país, ainda desconhecido.
Na
nossa viagem de férias tirei muitas fotografias, que
em breve vou revelar e ampliar. Voltei a instalar uma
câmara escura e todas as fotografias são
ampliações feitas por mim. Como agora tenho um
disparador automático, também apareço
de vez em quando. Sabes bem que este era o meu antigo hobby
e estou contente por poder voltar a dedicar-me a ele
após estes anos todos.
As
esplanadas estavam agora desertas de estrangeiros e os que
restavam formaram diferentes grupos de amigos, mais ou menos
integrados na vida lisboeta. Os que ainda cá estavam
tinham, na sua maioria, chegado antes da guerra. Por esta
altura, dos milhares que tinham feito escala neste porto,
já só sobravam uns cinquenta.
Durante a
minha infância, conheci-os através das
histórias que ouvia lá em casa. Muitas vezes
não ligava os nomes às respectivas caras, mas
sabia dos seus negócios, dos seus altos e baixos, das
suas vidas.
No caso da
minha família, a decisão de aqui ficar, embora
seguramente tomada muito antes, vejo, metaforicamente
assumida com a construção da casa em Birre.
Uma nova casa, um novo lar, uma nova história, um
novo princípio. Talvez tenha sido por isso que o meu
avô se tenha dedicado tanto a ela. Para ele, expulso
da pátria de todos os seus antepassados por causa da
sua religião, este pedaço de terra, em seu
nome, não podia deixar de o fazer sentir-se como num
mundo novo. "A minha pátria é onde
estão as minhas pernas", resumiu anos depois. E foi
naquele bocado de terra que as fincou mais.
Quando os
meus avós encontraram o terreno, não havia
lá nada. Passavam dias com os trabalhadores, servindo
refeições e observando a
construção com um indisfarçável
orgulho. No Verão de 1955 houve uma festa de
inauguração, um lanche servido no
terraço aos convidados, que eram todos, salvo alguns
vizinhos, antigos refugiados. Acredito firmemente que pela
primeira vez nesses anos todos, nesse dia, os meus
avós se sentiram em casa.
Já
não eram refugiados, tendo passado à
condição mais aceite de imigrantes. Ambos
tinham aprendido a língua relativamente bem, apesar
de a minha avó confundir ainda alguns artigos e nunca
se ter livrado da pronúncia. Por alguma razão
nunca tiveram amigos portugueses, mas tinham uma filha
portuguesa e, mais tarde, dois netos portugueses, apesar de
o meu pai ser igualmente filho de refugiados. Seja como for,
também não ficou nesta família durante
muito tempo. Viviam na tranquilidade de um país
parado. A minha avó nunca reviu a sua cidade natal,
do lado de lá do muro, mas, nos anos sessenta, voltou
a encontrar o seu irmão Hans. E o meu avô, uns
anos mais tarde, reencontrou a sua irmã, trinta anos
depois de se terem separado na Alemanha em 1936.
Quando o
meu avô acordou no Hospital, recordo-me que me
perguntou se estava na Alemanha e, nos anos que se seguiram,
voltou a cometer esse erro algumas vezes. Talvez, na sua
cabeça, nunca realmente tenha saído de
lá. E esta creio ser a doença do
exílio, a sensação de se estar sempre
distante de casa, longe da língua materna, dos livros
e da comida da nossa infância, da cultura dos nossos
pais.
Houve
alturas em que questionei toda a sua existência, em
que me coloquei perguntas que não tem resposta. O que
teria sido se ele não tivesse sido um judeu, poderia
ter vivido numa Alemanha nazi, será que teria
partido? Perguntas injustas, eu sei, mas não menos
angustiantes.
Agora
estou deste lado do ecrã, revendo todas as
fotografias e velhas bobines de 8 mm e vejo todos os que, um
a um, foram partindo, levando um pouco de mim para sempre.
Estranhamente, também eu, de certa forma, me tornei
num exilado. Onde fica a minha casa? Não tenho bem a
certeza. Possivelmente debaixo daquelas árvores de
que o meu avô tanto gostava.
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